2009 . Ano 6 . Edição 47 - 19/02/2009
Inaê Elias Magno da Silva
Há um ano, a seção Melhores Práticas da revista Desafios apresentava a reportagem intitulada "Cidadãos fazem outra cidade", que tratava da experiência de cidades no Brasil, a exemplo do que acontece em Bogotá, que estão construindo, por meio da sociedade civil organizada, indicadores de qualidade de vida para monitorar a gestão municipal e serem usados como parâmetros para cobrar resultados dos administradores públicos.
A certa altura, a matéria menciona uma pesquisa realizada com a população de São Paulo, que afirma ter a população sentimentos dúbios sobre a cidade.
"Depois de consultar grupos de diferentes faixas etárias e classes sociais e representantes de movimentos sociais, [a pesquisa] concluiu que a população tem sentimentos dúbios em relação à cidade", diz o texto. "A grande maioria dos entrevistados define São Paulo como 'caótica', destacando problemas de trânsito, carências de transporte público e dificuldades de acesso aos serviços e bens disponíveis. Muitos, no entanto, declararam-se 'apaixonados' pela cidade e confessaram que têm um sonho, qualificando-o como 'utopia': o de resgatar o orgulho de ser paulistano." (Desafios, ano 5, nº 39, 2008, p. 59).
Para a sociologia urbana, disciplina que vê a cidade como temática - causa e efeito da co-existência humana cotidiana em sociedade - e não exatamente como problemática - objeto de imperfeições a serem sanadas - não é surpreendente, tampouco dúbio, o sentimento expresso pelos paulistanos relativamente à cidade de São Paulo. Isso porque a construção e a reprodução dos sentimentos humanos de caráter social - aqueles que se apresentam como respostas subjetivas relativamente recorrentes no conjunto social ou no interior de um determinado grupo a um ou mais estímulos específicos - não seguem a mesma lógica cartesiana de causa e efeito que se pode emprestar aos produtos da razão.
O homus racionales e o homus economicus, sua derivação lógica, representam, ambos, fragmentações ideológicas do homem real. A completude do ser humano - ser acima de tudo social - encontra-se na complexidade que subjaz à existência concomitante, em um mesmo indivíduo, entre o sujeito que, em certas situações, elabora cálculos racionais e assim instrumentaliza sua ação social e aquele que, em outras, tem as emoções como motor primário de suas ações e representações.
Assim, quando o assunto é representação social urbana, a pluralidade de sentimentos e reações emocionais - e não necessariamente a dubiedade, posto que dubiedade é um termo que expressa um antagonismo que pauperiza a complexidade do fato emocional - constitui a regra, e não a exceção. Cálculos racionais do tipo "nesta cidade tenho emprego, casa, escola, lazer e transporte, logo sou feliz" não são aplicáveis ao tipo de relação predominante entre o citadino e sua cidade, aquela que, por ser seu hábitat cotidiano, é conformada por ele ao mesmo tempo que o conforma como sujeito social.
A despeito de, em muitos casos, a cidade reunir inúmeros problemas cujas soluções tendem a tornar mais qualitativa a vida das pessoas, ela será sempre um lar e, como tal, comportará sentimentos plurais e variáveis no tempo, no espaço, na forma e no conteúdo. Invariável no universo emocional do citadino é apenas sua complexidade inerente.
Uma vez que o fato emocional independe do estado objetivo das coisas e não resulta de um cálculo racional entre custos e benefícios, a investigação dos sentimentos do citadino em relação à cidade não configura o recurso metodológico mais adequado para avaliação da eficácia de planos e políticas públicas urbanas que visam à melhoria da qualidade de vida. Essa é uma resposta tipicamente racional que deve ser buscada ao nível da razão.
Mesmo para quem sonha com a ordem, é plenamente possível amar a vida em meio ao caos. Afinal, assim são os sentimentos.
Inaê Elias Magno da Silva é doutora em sociologia pela Universidade de Brasília e assessora técnica na Câmara dos Deputados
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