Economia - Riquezas e misérias de uma paixão nacional |
2006. Ano 3 . Edição 24 - 7/7/2006 Com a derrota na Copa do Mundo, o Brasil, a "Pátria de Chuteiras", acorda do sonho dos maravilhosos estádios alemães para a realidade econômica do futebol nacional. Se a seleção canarinho costuma ter uma trajetória vitoriosa nas disputas campais pelo mundo, o esporte praticado nos clubes e nos gramados locais, tem um longo caminho para encontrar o sucesso na geração de riquezas e empregos Por Anderson Gurgel
Depois de um mês assistindo aos jogos da Copa do Mundo rotineiramente, uma grande parte dos torcedores brasileiros passará por um estranhamento ao retornar à rotina do futebol no nosso país.A realidade bissexta do evento ocorrido até o dia 9 deste mês na Alemanha - onde os nossos melhores craques jogaram em campos moderníssimos e abarrotados de gente, sem que necessariamente houvesse brigas,desconforto nem atrasos - dará espaço ao nosso cotidiano futebolístico.Os estádios do nosso país,para os poucos que ousam ir até eles, não serão tão confortáveis e seguros; os jogos podem até ser bons, mas estranharemos a falta dos atletas que costumamos acompanhar. A distinta realidade do futebol brasileiro jogado em campos locais nos faz ter claramente a impressão de que existem "dois mundos" no esporte que é a paixão nacional. Na prática, essa constatação - que até poderíamos chamar de "óbvio ululante", para homenagear o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues - reforça ainda mais o conceito de "instituição nacional" que foi dado por alguns teóricos da área para essa prática desportiva criada há séculos no Oriente,organizada pelos ingleses e "canibalizada", reinventada,pelos que moram aqui. Em resumo, como em outras poucas coisas, o Brasil tem no futebol um fator de identidade. Isso, para o bem e para o mal, revela muito sobre nosso país, pois ousaríamos dizer que, nesse quesito, sofremos de dupla personalidade.Quando nos voltamos para o impacto econômico do esporte, por exemplo,deparamos com a mesma "Belíndia"já há muito estudada.O conceito sociológico criado há vários anos para dizer que a realidade brasileira apresenta extremos entre uma ponta de pirâmide de riqueza à la Bélgica e uma base de miséria como à da Índia também se mostra na nossa maior paixão. Na disputa pela equipe nacional mais cara, a seleção brasileira ficou em terceiro lugar. E la perde para a Ing laterra, primeira colocada, e para a Itália Na Copa do Mundo, de forma geral, vivemos um pouco do nosso lado "Bélgica", pois tivemos em campo a presença de um time milionário, formado por alguns dos maiores jogadores em atividade.Um estudo feito por consultores da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e publicado no site Globoesporte.com,pouco antes do mundial, avaliou a Seleção Brasileira em 235 milhões de euros.Um jogador como o Ronaldinho Gaúcho, sozinho, antes da competição,estava avaliado em 50 milhões de euros. Esses números impressionam, sem dúvida.Mas já traz uma informação bastante reveladora: a seleção canarinho não era a mais cara do mundo.Começam a surgir,em meio à riqueza,nossos problemas estruturais.Na disputa pela equipe nacional mais rica, deu a Inglaterra em primeiro e a Itália em segundo,com 246,3 milhões e 237,5 milhões de euros, respectivamente. Um dos mais interessantes estudos feitos para entender a importância do futebol em nosso país foi o Atlas do Esporte no Brasil, fruto de imenso empenho de uma grande equipe de pesquisadores, capitaneada pelo professor Lamartine DaCosta.Nesse estudo, é revelado que o esporte mais amado pelos brasileiros movimenta atualmente cifras em torno de 250 bilhões de dólares anuais no mundo todo.Sendo o nosso futebol um dos melhores do planeta, seria de esperar que estivéssemos bem colocados na distribuição dessa riqueza.Mas a verdade é que,desse total,a fatia do bolo que representa a prática futebolística no Brasil não chega a 2%.Em números mais precisos, aproximadamente 3,2 bilhões de dólares. É muito pouco de concretização financeira, se comparado ao que realizamos com a bola nos pés. Enquanto batemos um "bolão"nos campos de futebol, ainda não jogamos "uma bola redondinha"no jogo econômico desse esporte.Antes de tentarmos entender melhor algumas raízes desse problema, é importante que se diga que o que representa hoje esse esporte na economia nacional está longe de ser desprezível, mas também não faz jus à tradição que temos na sua prática. Estigma O futebol já levou grande parte da culpa pela alienação do brasileiro.Por muito tempo,esse esporte foi praticamente ignorado academicamente,colocado como um tema secundário ou menos importante. O motivo desse desdém era o uso político-ideológico dado a essa paixão do povo. Não sem razão: historicamente, essa prática é inegável."Desde Getúlio Vargas, os governantes usam o futebol como peça política",relembra o pesquisador Ary Rocco Júnior, que é também doutorando em futebol e novas tecnologias pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e vice-coordenador da Faculdade de Jornalismo da Universidade de Santo Amaro (Unisa), em São Paulo. Para Vargas, lugar de política era no campo de futebol, e ele não mediu esforços para isso, anunciando medidas de interesse trabalhista e fazendo desfiles de 1º de maio justamente nesse local. A ditadura militar soube trabalhar esse modelo de nacionalismo criado por Vargas e, na tabelinha com a seleção, criou a geração dos "90 milhões em ação". Não teve jeito: conquistamos o tricampeonato, em 1970; a Taça Jules Rimet era definitivamente nossa, até ter sido roubada da sede da CBF, no Rio, no começo da década de 1980. A venda de craques do Brasil para o exterior foi a principal fonte de receita dos clubes nacionais no ano passado Se o uso político do futebol não pode ser negado, o esporte número 1 do brasileiro não se restringe a isso.O antropólogo Roberto DaMatta afirmou que o futebol tem a capacidade de ensinar disciplina, regras de civilidade e conduta social às massas.E não deu outra,rapidamente o brasileiro mestiço e pobre,habilidoso,colocou ginga nesse esporte e viu nele a chance de conquistar mobilidade social.O futebol é o cartão de passe livre "para o andar de cima". É tão comum associar jogador brasileiro à miséria que sempre que surge um craque das classes mais abastadas,causa estranhamento. A dinâmica peculiar do futebol é ainda mais complexa e, se não movimentamos uma economia condizente com a importância histórica da nossa seleção, também não é pouco o que esse esporte gera por aqui.Segundo dados da CBF,o número de praticantes de futebol no Brasil é de cerca de 30 milhões de pessoas.Desses,são contabilizados profissionalmente 11 mil jogadores federados,800 clubes federados e por volta de 2 mil atletas brasileiros atuando em outros países.O número de times amadores que participam de jogos organizados deve estar por volta de 13 mil. Essa nação que joga bola pratica sua fé em uns 300 estádios, com mais de 5 milhões de lugares. Isso sem falar nos poéticos campos e campinhos de "pelada", que existem mesmo nos bolsões de pobreza mais inquietantes do Brasil - estimados em,pelo menos, 20 mil.Em conseqüência dessa demanda,a CBF revela que são fabricados anualmente no país 3,3 milhões de chuteiras para futebol de campo,além de 6 milhões de bolas de couro e 32 milhões de camisetas alusivas a times e ao futebol. O futebol movimenta cifras em torno de 250 bilhões de dólares anuais no mundo todo. A fatia do bolo que cabe ao Brasil é de 3,2 bilhões. Menos de 2% do total Para os pesquisadores do Atlas do Esporte Brasileiro, Ronaldo Helal, Antônio Jorge Soares e José Geraldo Salles,devem ser somados ainda os meros torcedores, aqueles que exercitam somente o hábito de ver os jogos de futebol sem suar a camisa.Com isso tudo, no conjunto, eles apontam que mais da metade da população tem vínculos com o futebol e faz a economia desse esporte girar.Os estudiosos chegam a dizer que a empregabilidade gerada pelo futebol é elevada. Eles apresentam dados,de 1998,já defasados, e produzidos pelo extinto Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto (Indesp),vinculado ao Ministério do Esporte, que revelam 2.602 municípios com espaços dedicados à prática futebolística - perto de 47,3% do total do país."Desse modo, o número mínimo de empregos diretos do esporte em questão pode ser estimado em 150 mil pessoas",completam. Calcula-se que existam cerca de 300 estádios no Brasil, com capacidade para 5 milhões de espectadores O consultor de marketing esportivo José Carlos Brunoro,que atualmente também é diretor de futebol do Programa Super Bola,do Grupo Pão de Açúcar, lembra que o cenário dos negócios futebolísticos cresce gradativamente."Poderia ser melhor, sem dúvida, se a administração dos clubes fosse profissional", acrescenta.Ele cita como avanços a criação da Medida Provisória 39, que versa sobre responsabilidade esportiva e obriga os clubes a publicarem seus balanços contábeis.
Outro ponto importante, para ele, é a criação da Timemania, polêmica loteria para ajudar as entidades clubísticas a saldar as dívidas com o Estado.Aprovada no Congresso Nacional, ela está em vias de implementação. Muitos especialistas, como o jornalista Juca Kfouri,temem que ela venha a se tornar mais um instrumento mal usado na mão da cartolagem.Apesar disso, o veterano consultor é otimista."Com tudo o que está sendo feito, em cinco a dez anos o futebol será economicamente viável", afirma Brunoro. Barrados Ainda mantendo no horizonte a memória recente da Copa do Mundo, vamos fazer uma provocação:qual seria o status do país se a competição na Alemanha tivesse,entre os parâmetros,a gestão administrativa do futebol? Um especialista que não hesita em encarar a questão é o coordenador de treinamento de conselheiros do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC),Leonardo Viegas."Na Copa da gestão,talvez o país nem sequer se qualificasse, seria barrado no torneio classificatório", opina. Na marca do pênalti A Casual Auditores Independentes está terminando, neste mês, o novo relatório com a análise financeira dos principais clubes brasileiros.Antes do lançamento, foram divulgados alguns dados preliminares. Segundo o estudo, a lista dos 20 maiores times do Brasil - e que publicaram o balanço referente a 2005 - contabilizou receita de 1,05 bilhão de reais no ano passado. Esse resultado, de acordo com Amir Somoggi, consultor associado, é o melhor já registrado na história do futebol brasileiro, e marca um crescimento de 28% em relação aos valores do ciclo anterior.
Contudo, por trás dessa evolução de receitas há uma armadilha perigosa: o resultado alcançado deve-se principalmente ao faturamento dos clubes com negociação de atletas. Esse item superou 300 milhões de reais em 2005. Entre os jogadores que foram negociados nesse período estão Robinho e Cicinho, vendidos, respectivamente, pelo Santos e pelo São Paulo Futebol Clube ao Real Madrid. Outra ação que engordou a receita foi a venda do atacante Fred, do Cruzeiro, para o Olimpic de Lyon. Entre as principais rendas apontadas, além da negociação de atletas, estão as cotas de TV e os patrocínios e publicidades. Carlos Aragaki, sócio da Casual Auditores, reforça que a transparência acaba vindo pelas demonstrações contábeis e pelas informações que são passadas aos conselheiros. Para ele, a medida provisória que hoje obriga os clubes a apresentarem seus resultados "pegou"."No início, a lei deu muito pouco tempo para os gestores prepararem o balanço, e os balanços dos clubes que seguiram a lei acabaram não sendo bem-feitos", lembra. Atualmente, os administradores têm prazo semelhante ao das empresas de outros setores para publicar seus balanços, ou seja, até o mês de abril.
"O grande problema é que não há punição para os dirigentes que não seguem essa lei", revela Aragaki. Segundo ele, está subentendido que os presidentes de clubes que não seguem a lei podem perder o cargo ou mesmo os benefícios fiscais de isenção de impostos. Mesmo assim, não há muita clareza nessa questão, o que, obviamente, dificulta e retarda a adoção das novas normas por todos. Entre os clubes analisados, há uma grande maioria que tem no seu status fiscal o conceito de empresa clubística, que "não visa ao lucro". Mas há também sociedades anônimas, como é o caso do Bahia e do Vitória. Há os clubes constituídos como limitadas, como o São Caetano e o Paulista, de Jundiaí."Independentemente do perfil, eles precisam adotar práticas, ou seja, trocar a gestão clubística pela governança corporativa, para ganhar maior força econômica", completa Somoggi.
Rafael Plastina,diretor de marketing da Informídia, empresa de marketing especializada em esportes, coloca em campo outro aspecto inquietante. Comentando um caso recente - a renovação do contrato da Nike com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sem a abertura de licitação -, ele pondera que, mais questionável do que a ação de renovar sem uma consulta pública, é a falta de percepção dos gestores da importância de estratégias definidas. "Um exemplo claro dessa típica falta de transparência do futebol brasileiro pode ser encontrado na ausência de um estudo para saber qual é o valor da marca CBF/Seleção Brasileira", aponta Plastina. Assim, sem saber quanto vale a marca,é muito complicado falar dos contratos que são fechados. "Faltam práticas administrativas que promovam essa visão mais abrangente da gestão e, por conseqüência,dos negócios envolvidos." Quase a metade das cinco mil cidades brasileiras tem algum campo de futebol. Daí que Viegas,do IBCG,sentencia que um pouco de melhores práticas faria um bem enorme ao mundo dos combalidos clubes de futebol brasileiros.O que existe atualmente é um histórico de gestões desastrosas, inoperância e corrupção."Essas entidades esportivas poderiam ganhar força caso adotassem os princípios que norteiam boa parte do empresariado em todo o mundo,especialmente as corporações de capital aberto", acrescenta. Renovação Hoje,mesmo algumas empresas de capital fechado inspiram-se nas políticas da governança corporativa, tanto para criar um meio de trabalho mais eficiente e aberto quanto para dotar sua gestão de valores importantes, como transparência e eqüidade.E o que tudo isso tem a ver com futebol? Tudo.Principalmente se quisermos manter a contínua renovação dos clubes e a geração de novos craques.Além do que a fragilidade dos clubes brasileiros faz com que nossos melhores talentos voem cada vez mais cedo para o exterior, esvaziando a força dos campeonatos locais. Amir Somoggi, consultor de negócios associado à Casual Auditores,comenta que não importa o modelo de gestão adotado por determinada associação futebolística, com melhores práticas e transparência os resultados vão gerar mais negócios.Ele ainda acrescenta que um clube tem a seu favor a paixão e o entusiasmo de seus torcedores. Outras empresas precisam criar essa relação." Mesmo que o clube não tenha como objetivo final o lucro,mas sim a satisfação do torcedor e a conquista de títulos, a adoção de governança ajuda a mudar o paradigma administrativo",diz. Dentro disso,Viegas traduz como poderia ser o futebol brasileiro renovado pelas melhores práticas.Na concepção dele, há quatro jogadas que as entidades ligadas ao futebol precisam treinar para que o Brasil bata um bolão na gestão do esporte.A primeira jogada é transparência.Nesse ponto, o que está em jogo é a adesão maciça à lei que obriga que clubes publiquem seus balanços, regulamentação que ainda não é obedecida por boa parte das agremiações esportivas de nosso país, especialmente as pequenas. A segunda fundamentação administrativa importante é a prestação de contas. "Nesse caso, falamos da atitude do administrador em dar satisfação aos associados", explica Viegas. Segundo ele, os dirigentes brasileiros precisam se habituar a dar esclarecimentos. No modelo atual, há uma perda de confiança muito grande no dirigente esportivo, o que inevitavelmente se reflete nos negócios do clube. Já em terceiro lugar,os dirigentes precisariam adotar o conceito de eqüidade. Dentro dos parâmetros de governança, esse item visa evitar que haja privilégios para alguns em detrimento de outros."É ocaso de promover a igualdade de direitos e oportunidades mesmo", explica Viegas. Segundo ele, é a crença nesse quesito que vai valorizar a empresa.Nesse ponto se fala, por exemplo, de eleições e concorrências abertas e claras. Existe uma medida provisória obrigando os clubes a divulgarem seus balanços, mas muitos não cumprem a lei. O São Paulo sempre publicou sua contabilidade Por fim, a quarta jogada a ser ensaiada no campo dos negócios do futebol é a responsabilidade corporativa.Nesse ponto, explica Viegas,as melhores práticas do clube estão alinhadas com conceitos como compromisso social.Como poucos outros casos, o futebol tem um vínculo de importância enorme com a sociedade."Acredito que, se o futebol se tornar referência para a sociedade, ele vai contribuir para levar a outros setores a importância da ética e da responsabilidade social", comenta. Segundo ele, isso seria uma forma de afetar a sociedade positivamente, contribuindo para a mudança de hábitos e comportamentos sociais.Em outras palavras, um segmento de mercado como o futebolístico, que tem grande força sociocultural, ao desenvolver novos modelos calcados em melhores práticas e compromisso social, não somente se torna mais forte como também funciona como paradigma a ser seguido por toda a sociedade.Taí um título fundamental que o futebol brasileiro precisa alcançar.
Para entender mais sobre os negócios do futebol Em ritmo de Copa, as editoras capricharam e lançaram vários livros abordando os aspectos econômicos do futebol e as relações entre esse esporte e o mundo corporativo. Conheça alguns deles: - Formando Equipes Vencedoras - Lições de Liderança e Motivação: do esporte aos negócios, com depoimentos de Carlos Alberto Parreira a Ricardo Gonzalez (Editora Best Seller) -Futebol para Executivos - Como aplicar as táticas do futebol nas empresas, de Edson Rodriguez (Editora Verus) - Jogada de Marketing - Aplicando as táticas do futebol à gestão empresarial, de Alexandre Luzzi Las Casas (Editora Saraiva) |