2010 . Ano 7 . Edição 62 - 23/07/2010 - Edição Especial
Dalmo Vieira Filho
Dentre os órgãos federais poucos apresentam a capilaridade do IPHAN, institucionalmente presente em todos os estados brasileiros. O IPHAN, sem contar os sítios arqueológicos, fiscaliza e atua na valorização de bens tombados em cerca de 300 cidades.
Qual a função social que legitima essa presença em todos os quadrantes do território, como ela se atualiza e como está inserida nos grandes desafios nacionais?
Ao IPHAN cabe mais do que referenciar o passado: o necessário é preservar e valorizar o que precisa integrar o futuro. A maior função do IPHAN é a de garantir o reconhecimento, a preservação e a apropriação dos bens "portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira...".
Para aquilatar a dimensão desses bens, basta lembrar que eles abarcam o universo das realizações individuais e coletivas, materiais e imateriais, estabelecidas pelo conjunto dos seres humanos que habitaram o território brasileiro. Esses bens constituem fatores de compreensão da nação brasileira, pois sinalizam os processos históricos e a extraordinária capacidade de realização criativa do nosso povo. São as cidades históricas, os bens arqueológicos, os monumentos tombados, os bens móveis e integrados, os documentos, os acervos bibliográficos, as obras artísticas e científicas, o patrimônio imaterial reconhecido, as paisagens naturais e culturais, que singularizam cada recanto do território continental.
Este conjunto de bens proporciona cenários que se relacionam com a geografia e o meio ambiente, lugares e bens que referenciam e emocionam; atua na afirmação e na auto-estima da população; protege acervos; congrega os referenciais simbólicos da identidade do país e da sociedade que habita e habitou o Brasil.
Referenciar a história significa instigar a reflexão, aprofundar e atualizar o autoconhecimento, empregá-lo na construção de uma nação mais justa e rica, que salvaguarde seus atributos, reflita sobre si, aja segundo seus ideais e garanta padrões verdadeiros de qualidade de vida a seus cidadãos.
Para corresponder a desafios institucionais dessa grandeza, o IPHAN precisa viabilizar uma maior apropriação dos bens reconhecidos como patrimônio cultural por parte da população, em especial nos processos educacionais, na produção de riquezas e na formatação dos ideais de cidadania.
Essa apropriação depende de que os bens protegidos gerem postos de trabalho baseados não só na sua conservação, mas também nas formas de transmitir significados e induzir o interesse pela história e pela cultura de um modo geral. Depende também de fazer com que a atividade educacional utilize amplamente os bens e valores chancelados como patrimônio.
Matéria prima dos macro-processos educacionais permanentes, que abarcam mas não se limitam à escolaridade formal, e fator que cria trabalho e renda - o patrimônio ganhará significância social e poderá aspirar ao seu verdadeiro papel: gerar padrões e moldar comportamentos. Uma rede formada por elos de uma formação continuada abarca educação de qualidade, lazer, turismo e usufruto da cultura, que se subdivide em campos e atividades onde prevalece a arte e o patrimônio, devem formar um substrato social e econômico de peso crescente nas estratégias de desenvolvimento do país.
É necessário dotar a sociedade de sinalizadores de lugares, bens e valores permanentes e universais, impregnados de arte, ciência, cultura e história, densos em concretude e autenticidade, equilibrando a carga de informações e sensações, ofertadas em todos os recantos do planeta pela sociedade de massa, que se impõe no mundo atual. Não se trata de negar a contemporaneidade, a miríade de oportunidades inovadoras, mas de contrabalançar as novidades com o que resulta de acúmulos, de realizações e capacidades.
A base de apoio formada pela bagagem que configura a cultura e o patrimônio disponibilizado para as atuais gerações, não pode ser construída para retê-las nos limites da tradição. A função do patrimônio, derivada da atemporalidade, ao contrário de reter, deve dotar as gerações de repertórios capazes de instrumentá-la nos rumos ainda desconhecidos do futuro. Patrimônio é tudo o que deve permanecer para a posteridade e, nesse sentido, o equipamento com que uma nação deve dotar seus membros vai além das premissas de nutrir e proporcionar saúde. Sendo o Brasil um verdadeiro caldeirão de cultura, no momento em que o país se estrutura para dotar a sociedade dos requisitos essenciais da cidadania, não pode faltar o estímulo ao espírito. Parâmetros que incluem justiça, educação e oportunidades iguais, presentes em padrões efetivos de qualidade de vida que não sejam efêmeros, não podem prescindir das dimensões e horizontes da cultura.
É nesse contexto que situamos a função do patrimônio cultural como sendo a construção permanente que perpassa todos os processos de cidadania e as noções de qualidade de vida, que reconhece, guarda, reúne e disponibiliza continuamente as realizações de todos os que nasceram, vivem ou viveram no território chamado Brasil, que constituem o conjunto e o substrato das criaturas de todos os tempos que compõem o povo brasileiro.
Dalmo Vieira Filho é diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN
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