2006. Ano 3 . Edição 23 - 6/6/2006
Depois de mais de três anos na presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o professor de sociologia Glauco Arbix volta à carreira acadêmica na Universidade de São Paulo.Nesta entrevista, ele conta como enxergou o governo, o Estado e o país a partir da ampla janela de seu gabinete, no 15º andar de um prédio com vista para a Esplanada dos Ministérios.
Por Andréa Wolffenbüttel , de São Paulo
Pensar no longo e médio prazo é uma prática custosa. Implica não só nos gastos materiais, mas investimentos enormes na preparação de pessoas
Desafios - Depois de mais de três anos à frente do Ipea, basicamente um órgão de planejamento de longo prazo, o senhor concorda com o entendimento comum de que o governo não tem cultura de planejamento? Arbix- Não é só o governo que não tem essa cultura. A sociedade não tem. Eu não sei se teve no passado, mas, se teve, desaprendeu. Pensar no longo e médio prazo é uma prática custosa. Implica não só gastos materiais, mas investimentos enormes na preparação de pessoas. Não é uma atividade corriqueira e trivial, como muitos pensam. Não é uma atividade de que o Ipea, e muito menos o Estado brasileiro, possa prescindir. As grandes empresas aprenderam, muitas vezes com os Estados, a pensar no longo e médio prazo, a desenvolver atividades para reduzir incertezas e riscos. Os Estados precisam desse tipo de atividade, especialmente o nosso. O problema é que, por temor da “mão torta” do Estado, dos erros, dos abusos, dos excessos, da ação impensada e eventualmente incompetente, desenvolveu-se aqui uma resistência que impede muitas pessoas de ver com bons olhos a ação do Estado. Mas ela é necessária à sociedade brasileira, e o Ipea tem capacidade para ajudar a repensar como o Estado deve funcionar e trabalhar. Não há nenhum erro que justifique o abandono do planejamento no longo e médio prazo, como nós exercitamos há 20 ou 30 anos.
Desafios - E o governo tem essa consciência? Arbix - Certamente alguns setores têm. Na área de ciência e tecnologia, por exemplo, quem não consegue pensar no médio e longo prazo está fadado ao fracasso. Ou se detectam tendências para saber onde investir, ou não se consegue avançar no sentido de construir uma base forte de que tanto precisamos. O Ministério da Ciência e Tecnologia sabe disso e desenvolve muita coisa. A política industrial, que o governo definiu, abandonou aquela visão mais vulgar de defesa da empresa nacional com protecionismo e subsídios, ou com a reedição da política de substituição de importações. Graças a Deus, a política industrial definida pelo governo foi diferente e procurou pautarse pelo médio e longo prazo. Definiu áreas extremamente sensíveis da atividade industrial, pensou na tecnologia, no comércio exterior e na indústria de forma integrada, como uma unidade. Não definiu uma política pesada, de intervenção do Estado, mas uma política orientada para as empresas, porque são elas que constituem o foco da inovação e da ampliação da competitividade brasileira.
Desafios - Houve essa preocupação em outras áreas? Arbix - Eu acredito que na área de defesa da concorrência também se avançou. E pensou-se no médio e longo prazo na definição da política fiscal. O Estado brasileiro, além da oscilação de seus governantes, tem instituições sólidas que tendem a sustentar a trajetória no longo prazo. Na Secretaria do Tesouro Nacional, existe um guardião do gasto público, que está de olho na qualidade dos investimentos. Essa maturação institucional é essencial. Se não for assim, ficamos à mercê dos humores da política e dos governantes. Isso ocorre, faz parte da vida, ninguém quer negar a política como uma atividade real, mas eu creio que a função do Estado é justamente dar estabilidade, garantir seqüência, evitar interrupções e guinadas bruscas, perseguir objetivos e cumpri- los. Claro que de vez em quando ocorrem escorregões, mas estão em curso avanços institucionais extremamente importantes.
Desafios - Falando em inovação, um dos trabalhos que o senhor promoveu no Ipea foi uma ampla pesquisa sobre o tema. O que o levou a se entusiasmar pelo assunto? Arbix - Dois motivos. O primeiro é que acho que o Brasil precisa ter um mapa de seu sistema produtivo e de sua capacidade de inovar, que não é alta se comparada com os países mais avançados, mas vem crescendo ao longo do tempo. A idéia de rastrear, de capturar informações sobre o que estamos fazendo, me anima muito, porque permite discutir potencialidades. Captar o estágio do sistema produtivo brasileiro, na indústria, no comércio, nos serviços, na agricultura, é fundamental para definir as melhores formas de estimular a inovação, que hoje é chave para aumentar a competitividade das nações.
Desafios - E qual é o segundo? Arbix - O segundo tem uma dimensão interna que eu sempre considerei bastante importante. Quando o Ipea foi criado, na década de 60, suas atividades incluíam não só a missão de pensar o Brasil no médio e no longo prazo, como também de elaborar, implementar e executar o Orçamento da União. Várias atividades que o Ipea desenvolveu ao longo de sua existência foram gradativamente absorvidas por outros órgãos. Os ministérios tornaram- se mais profissionais, criaram seus departamentos de pesquisa e puxaram tarefas para si. Mas até hoje o Ipea carrega, em sua organização, essa marca original. Tem diretorias de estudos setoriais, de estudos regionais e urbanos, de estudos sociais. Temos diretorias que tentam, mais ou menos, dividir a produção científica, ou a elaboração de políticas, de acordo com limites comuns em outra época. Atualmente, as atividades geradoras de conhecimento e as políticas públicas exigem uma integração muito maior. Precisamos definir políticas transversais. Em outras épocas, fazia sentido ter uma diretoria de estudos setoriais, porque o problema era completar as cadeias metalúrgica, siderúrgica, química, petroquímica, de transportes etc. Víamos o que os países avançados tinham a mais e tentávamos internalizar, via substituição de importações. Isso já não é mais adequado. Ser competente em todas as áreas da produção é praticamente impossível atualmente, se é que algum dia foi. As nações precisam procurar desenvolver suas capacidades nas áreas, nas dimensões, nas fases dos processos produtivos em que têm maior capacidade. Seja capacidade humana, tecnológica, seja de geração de conhecimento, de comércio, de negociação, é preciso procurar. Isso significa que, se antes podíamos, devíamos e éramos convidados a pensar setorialmente, hoje somos instados a pensar integralmente.
Desafios - Em que áreas? Arbix - Na área de inovação, por exemplo. Tem muita gente pensando em inovação nos setores de alta tecnologia, mas uma visão abrangente de inovação, que é aquela com a qual trabalhamos, permite pensar no processo de inovação inclusive em setores mais atrasados ou mais maduros, como o têxtil e o de vestuário. A inovação é um conceito que permeia todas as atividades. Você deixa de pensar em setores dinâmicos, mais avançados, para se ocupar dos processos de diferenciação, capacitação, qualificação, que podem ocorrer em qualquer área, em qualquer segmento, em qualquer empresa, em qualquer fase do sistema produtivo, não só nos high-tech. Essa é a chave para que os países ampliem sua participação em nível mundial, diversifiquem a pauta exportadora e melhorem os produtos para o mercado interno. É a chave para que as empresas ofereçam empregos de melhor qualidade, mais bem remunerados e com maior estabilidade. Se o país está orientado para a inovação, as empresas são mais exigentes e dinamizam o mercado de trabalho de maneira diferente. O Brasil começa a dar passos nessa direção, mas ainda está muito aquém do que pode e deve fazer.
Desafios - O que o senhor achou mais interessante ou surpreendente na pesquisa? Arbix - Veja, há muitos que defendem, até com certo empenho, teses segundo as quais o Brasil caminha para ser um país fornecedor de produtos primários ou de commodities. A pesquisa mostra que isso não é verdade. A participação de produtos de alta e média intensidade tecnológica na nossa pauta exportadora aumenta a uma taxa muito maior do que a das commodities. O número de empresas inovadoras cresce, e elas vêm lucrando em áreas em que pouca gente diria sermos capazes. O caso da Embraer é típico. O Brasil hoje tem uma indústria aeronáutica invejada por grandes países, inclusive China e Índia. Fazemos parte do seleto clube dos que conseguiram desenvolver uma indústria desse porte e desse tipo.
Desafios - Mas a Embraer importa grande parte dos componentes dos aviões que fabrica. Arbix - É errada a visão de que o avião tem de ser feito todo aqui. São raros os países, talvez apenas os Estados Unidos, que conseguem fabricar um avião completo. Mas a Embraer cultivou aptidões em áreas-chave, como o design - que é a inteligência fabril, o projeto - e a gestão. É admirável sua habilidade para coordenar fornecedores que produzem equipamentos capazes de voar. Muitas vezes, os que falam mal da atual política industrial, por não proteger nossa indústria, são os mesmos que criticam a Embraer, dizendo que ela importa muito. É engraçado que ajam assim, porque a Embraer faz exatamente o contrário do que eles criticam na indústria automobilística, por exemplo: que as montadoras produzam aqui, com mão-de-obra barata, e o projeto do automóvel seja desenvolvido nos grandes centros. No caso da Embraer, ficamos com a inteligência. Em outras áreas, como em empresas de cosméticos, autopeças e siderurgia, também estamos avançando muito. A siderurgia brasileira é altamente competitiva e inovadora. Nós temos de perceber os avanços e desenvolver políticas que estimulem essas áreas - e não as cerceiem.
Desafios - Outro tema de que o senhor gosta é a redução da desigualdade no Brasil. Arbix - É claro que eu fiquei muito entusiasmado com os resultados colhidos no Brasil nos últimos três anos, porque passei a vida acreditando que o principal obstáculo ao nosso desenvolvimento é a desigualdade. O impacto negativo da desigualdade sobre o crescimento é maior até do que o da pobreza e, pela primeira vez em nossa história, há queda significativa da desigualdade por três anos consecutivos. Ainda estamos analisando até que ponto o mercado de trabalho, o sistema educacional, programas de transferência, como o Bolsa Família, ou o salário mínimo, tiveram influência nisso. A discussão sobre as raízes, e a precisão do peso de cada fator, ainda está em curso. Eu fiquei particularmente entusiasmado porque no Ipea temos, talvez, os principais pesquisadores na área. Poucos institutos, no mundo, podem contar com profissionais de qualidade, como Ricardo Paes de Barros, Mirella de Carvalho, Sergei Soares, Marcelo Medeiros, Fabio Veras. São pessoas que se debruçam sobre a questão da desigualdade e geram explicações diferenciadas e em várias dimensões.
“Inovação é a chave para que as empresas ofereçam empregos de melhor qualidade, mais bem remunerados e com maior estabilidade. Se o país está orientado para a inovação, as empresas são mais exigentees e dinamizam o mercado de trabalho de forma diferente” |
Desafios - O senhor está organizando uma comissão de alto nível para estudar o assunto? Arbix - Sim. Essa comissão é coordenada pela cientista Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga que trabalhou na Unicamp e na USP e hoje está na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. É composta de especialistas de primeiro escalão, como Eduardo Krieger, presidente da Academia Brasileira de Ciências; Álvaro Comin, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento); José Luis Machinea, secretário executivo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, da Organização das Nações Unidas); e o vice-presidente do Banco Mundial, François Bourguignon, entre outros. Também deve contar com a colaboração de dois ganhadores do prêmio Nobel: James Heckman e Joseph Stiglitz. Uma equipe desse nível pode articular mais idéias do que um grupo de pesquisas no Brasil e fornecer um material inestimável para o governo e para a sociedade brasileira. Eu fiquei muito contente com a maneira como o Ipea entrou nesse debate, de peito aberto, analisando o tema não só do ponto de vista das virtudes, mas também dos obstáculos, das dificuldades, dos limites.
Desafios - Como o senhor vê a função do Ipea? Arbix - O Ipea deve trabalhar para consolidar-se, superar-se como principal centro produtor de políticas públicas do Estado brasileiro. Reúne um contingente grande de pesquisadores de qualidade, com capacidade para desenvolver linhas de racionalidade que levem o Estado a superar suas fragilidades em várias áreas, como a de desenvolvimento econômico, a social e, principalmente, a de planejamento.
De volta às orquídeas
Glauco Antonio Truzzi Arbix cultiva pelo menos três coisas com grande apreço: a pesquisa, o longo bigode e as orquídeas. É dono de uma personalidade intrigante, que mistura a sensibilidade de orquidófilo com arroubos surpreendentes de sinceridade. Talvez essa característica seja herança dos antepassados italianos e libaneses (sim, Arbix é um sobrenome libanês). Duas culturas mediterrâneas famosas pelo sangue quente. Em suas conversas transparecem o raciocínio rápido, a análise perspicaz, o olhar curioso e, sobretudo, uma forma peculiar de ver o mundo. É um mestre, pela clareza com que exprime suas idéias e por formação. Graduado em Filosofia e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), cursou pós-doutorado na Cornell University, no Instituto Tecnológico de Massachusetts e na London School of Business. Depois de atuar na área de comunicação, na iniciativa privada; e de lecionar na Fundação Getulio Vargas, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na USP; passou três anos e meio no comando do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde imprimiu um ritmo novo aos trabalhos, buscando integrar as diversas áreas de conhecimento e produzir informações necessárias à concepção de boas políticas públicas. No final do mês passado, deixou a presidência do Ipea para voltar à carreira acadêmica e às suas orquídeas, que durante os últimos anos aguardaram pacientemente seu retorno, num jardim da zona sul de São Paulo.
|
Desafios - Em sua gestão o senhor trabalhou para que o instituto falasse também à sociedade com, pelo menos, dois projetos. Um é a revista Desaf ios e o outro é o livro Brasil: o Estado de uma Nação. O senhor acha que o Ipea deve ter interlocutores além do governo? Arbix - O Ipea carrega essa dupla missão. Ele é um órgão de governo, financiado com recursos públicos, que fornece informação qualificada e conhecimento para que as políticas de governo sejam elaboradas da melhor maneira possível. Ao mesmo tempo, faz pesquisa que não está necessária e diretamente ligada à elaboração de políticas, e isso é superimportante. Uma missão é tão legítima quanto a outra. Só que a segunda fala a um público que não é de governo, mas também não é maciço, amplo. O instituto tem obrigação, para com a sociedade, de fornecer suas análises, suas avaliações, seus dados, seus indicadores, sua metodologia. Não há democracia se a informação não é qualificada. Se a sociedade conseguir apoiar-se num órgão público, sustentado e financiado com seus recursos, e encontrar nele o suporte e a credibilidade para entender melhor as informações, a imprensa, o mundo da política, o debate das idéias, a maneira como o Estado incrementa suas ações, nós avançaremos muito. Não estamos vulgarizando o conhecimento científico, mas qualificando o debate. Além disso, nossos órgãos de comunicação funcionam como emuladores da reflexão dentro do Ipea. A revista Desafios, se é verdade que tem a pretensão de falar a um público maior do que a comunidade científica em torno do Ipea, ou daqueles que freqüentam nossa página na Internet, também é verdade que muitas vezes coloca desafios a nossos pesquisadores. Com o livro Brasil: o Estado de uma Nação acontece o mesmo. Veja só o tema deste ano: mercado de trabalho, emprego e informalidade. O Ipea não tem uma visão sistematizada, consolidada, sobre a questão do mercado de trabalho. Quando se dispõe a desenvolver esse projeto, busca os meios. O tema do próximo ano é a eficiência do Estado. Quem, fora e dentro do Ipea, pensa sobre a eficiência do Estado? O que temos são especialistas em particularidades. Alguém que pega uma janelinha da saúde, uma janelinha da educação, uma janelinha da indústria. . . São visões recortadas da realidade. Colocar isso de forma articulada, e pensar o Brasil como um todo, é extremamente desafiador. Falar com a sociedade não é só uma questão de divulgação. É dar nova qualidade à atividade do Ipea. Isso está intimamente ligado à idéia de recuperar a capacidade de planejamento do Estado e da sociedade, no médio e longo prazo.
“Do ponto de vista pessoal, a experiência em Brasília, no Ipea, é insubstituível. Eu pude ver o Estado em ação, a maneira como se tomam decisões, vi a máquina funcionando por dentro. Em Brasília, você é obrigado a pensar no país” |
Desafios - O que o senhor gostaria de ter feito no Ipea e não conseguiu? Arbix - Muitos projetos acabam não se desenvolvendo no devido tempo. Talvez dotar o Ipea de uma capacidade capacidade maior de produção de políticas públicas, de pesquisa; melhorar a qualidade dos equipamentos, as condições nas quais desenvolvemos pesquisas. Mas, devido às restrições de ordem fiscal e financeira, os projetos acabam não saindo do papel. Eu insisti no aperfeiçoamento dos mecanismos de acompanhamento. Colocar o Ipea diante de uma avaliação externa, permitir que ele seja comparado a instituições semelhantes, para perceber suas falhas e virtudes. As grandes instituições desenvolvem, de forma cada vez mais sofisticada, mecanismos de avaliação de suas atividades. Esse é um processo necessário, que demanda tempo. O Ipea é muito bom para avaliar os outros. Nem sempre é tão bom para avaliar a si mesmo. Mas acho que há disposição para isso.
Desafios - Depois de ter passado pela iniciativa privada e pela universidade, como o senhor avalia sua primeira experiência na administração de uma empresa pública, o Ipea? Arbix - Do ponto de vista pessoal, a experiência em Brasília, no Ipea, é insubstituível. Por mais dores de cabeça que tenha tido, e não as tive mais do que qualquer cidadão normal, eu pude ver o Estado em ação, os ministérios, a maneira como se tomam decisões, vi a máquina funcionando por dentro. Em Brasília você é obrigado a pensar o país. Então, muitas coisas que têm uma importância enorme na universidade aparecem muito pequenas. Outras aparecem na proporção real. Graças a Deus, o Brasil é muito maior do que os políticos, do que os partidos, do que os governos. Isso nos anima. Hoje, com certeza, eu penso diferente, tenho melhores condições de observar o país. Aprendi que o setor público é muito difícil, amarrado por regras, leis e normas. Há variáveis que independem de nós e interferem no que fazemos. Uma malha de constrangimentos que dificultam a ação e colocam no devido lugar as intenções de mudança. De longe, as coisas parecem mais simples do que são.
|