Justiça high-tech - Os Juizados Especiais Federais paulistas são exemplos de eficiência do Judiciário |
2005. Ano 2 . Edição 9 - 1/4/2005 A utilização de equipamentos tecnológicos e a racionalização do trabalho fizeram dos Juizados Especiais Federais paulistas um exemplo de eficiência no sistema Judiciário
Cena comum num tribunal do país: salas com processos empilhados à espera de julgamento Os Juizados Especiais Federais existentes em São Paulo são exemplo de que o sistema Judiciário não precisa ser o mar de ineficiência que afoga tantos brasileiros. Ali, o uso de tecnologia, a criatividade e a reorganização administrativa surtiram efeitos notáveis na qualidade da prestação de serviços à população. De seu amplo gabinete, instalado no 12º andar de um prédio na avenida Paulista, o desembargador José Eduardo Santos Neves coordena a operação de 14 juizados espalhados por 12 cidades em São Paulo e em Mato Grosso do Sul. Sob sua orientação trabalham cerca de quatro dezenas de juízes e, ao falar, ele não dispensa termos rebuscados, como procrastinação, instrumentalidade ou propositura, comuns no universo do Direito. Mas uma observação mais atenta revela que, apesar da pose e do clássico conjunto de terno e gravata, Santos Neves foge um pouco do estilo do desembargador típico. Uma fitinha de Nosso Senhor do Bonfim, cuidadosamente escondida sob a pulseira metálica do relógio, denuncia que há algo de diferente nesse juiz federal. Sobre sua mesa não se acumulam pastas de processos. Tampouco sobre a mesa dos assessores ou em qualquer uma das salas dos seis andares do Juizado Especial Federal da capital de São Paulo (JEF/SP). As toneladas de papel amarelado, características de qualquer repartição ligada à Justiça, simplesmente foram abolidas. Todos os documentos são escaneados e arquivados eletronicamente, e todos os processos que passaram pelo JEF/SP em seus três anos de funcionamento, mais de 1 milhão, estão guardados num computador com 1,4 terabytes de memória, o que equivale a algo em torno de um trilhão e meio de bytes. A lei dizia o que devia ser feito, mas não explicava como. A comissão responsável pela concepção do modelo dos Juizados Especiais da 3ª região, que engloba os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, decidiu levar a proposta a sério e concluiu que seria impossível agilizar o trabalho e atender à demanda seguindo os padrões tradicionais. Só em 2003, 850 mil ações entraram na Justiça pelas portas do JEF/SP. Quinhentas mil, mais da metade delas, foram julgadas até o final de 2004. "Só conseguimos realizar esse feito por causa da informatização. Um juiz pode assinar mil sentenças de casos semelhantes de uma só vez apertando uma tecla de seu computador", diz José Carlos Motta, juiz-presidente do JEF/SP. Trata-se de um formulário padronizado com todas as informações necessárias para quem quiser acionar o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Foram impressos milhões de kits, distribuídos encartados nos jornais populares de maior circulação da capital. O interessado preenchia o questionário, anexava os documentos requeridos e enviava tudo pelo correio. O carimbo da postagem valia como data de ingresso da ação. O método inovador reverteu a expectativa de que a Justiça não conseguiria contemplar todos os pedidos. Mas a estratégia só funcionou graças a duas peculiaridades dos Juizados Especiais: a isenção das custas de processo e a liberação da necessidade de um advogado para intermediar a ação. Do total de pedidos recebidos em 2003, mais de 90% não contaram com a intervenção de advogados. Não precisa nem dizer que o modelo não agrada à Organização dos Advogados do Brasil (OAB). Ele reduziu os rendimentos de parte da categoria, sobretudo dos especialistas em direito previdenciário. "A questão não é a dispensa do advogado. É que leigos passaram a orientar as pessoas. Prestam um mau serviço e tiram o trabalho de quem estudou para isso", diz Paulo Henrique Pastori, presidente da Comissão de Seguridade Social e Previdência da OAB. "Enfrentamos todo tipo de dificuldade, desde a descrença no nosso método até o desprezo de quem achava que o Juizado Especial era uma Justiça de segunda classe, voltada para as causas sem importância movidas pelas camadas mais pobres da população", lembra Santos Neves. Passados quatro anos, o JEF/SP bate recordes sucessivos de produtividade e já é considerado por muitos um exemplo a ser imitado. No início foi preciso criar cargos rotativos de juízes, que serviam de três a seis meses, e depois voltavam a suas varas, já que ninguém queria ficar definitivamente no Juizado Especial. E por que tanta resistência? Além da carga maior de trabalho e da necessidade de adaptação aos novos métodos, os juízes dos Juizados Especiais não têm equipe própria de apoio, ao contrário do que acontece na Justiça tradicional, em que cada juiz conta com uma secretaria composta de 12 a 19 servidores. No JEF/SP há uma secretaria comum, com cerca de 40 funcionários, atendendo aos 18 juízes. Essa organização traz melhor aproveitamento de cada empregado e, obviamente, uma redução drástica no custo da secretaria. A economia permite que a folha de pagamentos abrigue outra estrutura fundamental para o bom funcionamento do JEF/SP e, sobretudo, para o bem-estar dos usuários: o atendimento ao público. Este último grupo tem seus documentos escaneados e devolvidos, e sai do Tribunal com a data da audiência marcada. São sete máquinas para digitalizar os documentos (scanners), instaladas no fundo do setor de atendimento, que processam aproximadamente 15 mil imagens por dia. E será que todo mundo fica satisfeito? É claro que não. Basta conversar com as pessoas sentadas na sala de espera para ouvir muitas queixas. De cada três consultados, dois reclamam de alguma coisa, especialmente da demora. Parece decepcionante, mas por outro lado um terço dos usuários se mostram satisfeitos - o que chega a ser surpreendente quando se trata do Judiciário. "Não adianta apenas dar entrada na ação. As pessoas têm o direito de saber o que está acontecendo com o processo", diz Márcio Antônio da Conceição, responsável pela consulta processual. Ele se declara um apaixonado pelo que faz e garante que só é possível trabalhar ali dessa forma. Em intervalos regulares, dá uma espiada na fila de espera, para dar prioridade a pessoas em piores condições, seja pela idade, seja pela saúde. Irineide de Carvalho confirma a qualidade do atendimento. Ela entrou com um processo, sem auxílio de advogados, solicitando pensão por suposto falecimento do marido. "Acabo de saber que meu caso já foi julgado e vou receber a pensão. O pessoal aqui trabalha muito bem", diz. Mas a opinião não é unânime. Cláudia Maria Henrique Pinto enviou pedido de revisão da aposentadoria do pai há um ano e até hoje não teve notícias do processo. Márcio da Conceição explica que dos kits juizado recebidos pelo Correio, cerca de 140 mil ainda estão em estudo porque a equipe do JEF/SP não conseguiu entender exatamente o que estava sendo requisitado. É provável que o pedido de Cláudia Pinto esteja nesse grupo. A informação esclarece, mas não ameniza em nada a indignação da pleiteante.
Assim, todas as pessoas que solicitam pagamentos por problemas de saúde podem ser examinadas no mesmo dia por um profissional habilitado pelo Ministério da Justiça e receber o laudo médico, que é anexado ao processo. No prédio também há um posto do INSS que esclarece dúvidas e fornece os dados necessários para a confecção do pedido de ação. Lá o aposentado pode obter seu número de identificação no INSS ou saber se está entre aqueles cujas pensões foram mal calculadas. Também há uma equipe de assistentes sociais aptos a avaliar as condições socioeconômicas e elaborar laudos para os que pleiteiam ajuda específica para famílias pobres, como o benefício conhecido como Loas (Lei Orgânica de Ajuda Social), pago àqueles cuja renda per capita familiar é inferior a um quarto do salário mínimo. Luiz Cláudio Benck, assessor de gabinete da coordenadoria do JEF/SP, cuja primeira tarefa como funcionário da Justiça foi como numerador de processos, lembra-se do dia em que recebeu uma ação de Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo. "Eram mais de duas mil páginas. Eu tive de numerar e conferir todas. Levei um dia inteiro fazendo isso. Foi desanimador!" No JEF/SP, as páginas são automaticamente numeradas quando os documentos são escaneados, no mesmo momento em que o processo recebe sua identificação e certificado de autenticidade. Outra vantagem é que os casos estão sempre ao alcance do juiz, no computador sobre a mesa, o que agiliza o trabalho e aumenta a produtividade. "Para nós, é um orgulho trabalhar aqui", declara Carla dos Passos Moraes, oficial de gabinete da presidência e que está no JEF/SP desde sua inauguração. Foi esse mesmo sentimento que levou alguns juízes, que inicialmente trabalhavam de forma rotativa no JEF/SP, a solicitar a criação de cargos definitivos. Inicialmente imaginou-se que eles fossem motivados pela perspectiva de poder fazer justiça social, mas a quantidade de ações julgadas improcedentes, aproximadamente 37%, mostrou que fazem Justiça mesmo, sem conotação social. "Conversando com eles descobrimos que o que atrai os juízes é a possibilidade ver o resultado de seu trabalho", conta Motta, o atual juiz-presidente. "Na Justiça tradicional são tantos recursos, tantas idas e vindas que alguns juízes federais se aposentam sem ter visto sequer uma de suas sentenças aplicada." Como nos processos dos Juizados Especiais há um limite para recursos, eles acabam chegando ao final muito mais rapidamente. Além disso, há uma turma recursal funcionando dentro do JEF/SP, o que permite que os recursos sejam julgados sem sair do sistema interno do juizado. Finda a ação, há um prazo de 60 dias para que o pagamento seja efetuado numa conta corrente aberta pelo pleiteante na Caixa Econômica Federal, que tem uma agência no prédio do Juizado. Para ter uma idéia do que representam as quase 300 mil solicitações acatadas pelo JEF/SP, já foi depositado 1,48 bilhão de reais nas contas dos beneficiários. Mais do que a soma de todos os pagamentos efetuados, no mesmo período, a mando das varas da Justiça Federal de todo o Brasil - 1,2 bilhão de reais. Voluntários Obviamente, todo esse dinheiro saiu dos cofres do governo federal, sobretudo do INSS, que é alvo de mais de 90% das ações do JEF/SP. Porém, por mais surpreendente que possa parecer, o INSS é um grande parceiro do juizado. Aceitou ser notificado eletronicamente, dispensando a impressão dos documentos e a tradicional visita do oficial de Justiça. Firmou um acordo para que o próprio Instituto faça as contas do valor ao qual o beneficiário tem direito, o que eliminou uma das incumbências do juizado. Por fim, o INSS criou uma contestação padrão, que serve para todas as ações referentes ao mesmo tema. Assim, não é necessário que o juizado aguarde o posicionamento da Previdência. Já se sabe que para solicitações semelhantes a resposta do INSS é sempre a mesma, e basta agregá-la ao processo. Agora a Caixa Econômica Federal, que também é alvo de muitas ações, prepara-se para adotar os mesmos procedimentos. É um jogo em que todo mundo ganha", declara João Batista Inocentini, presidente do sindicato. Outra fonte de colaboração são os voluntários. Muitos estudantes de Direito aproveitam para aprender enquanto ajudam a população. Marcos Hideo está no quarto ano da faculdade e há um mês dá expediente no atendimento ao público. "O trabalho está valendo muito para mim, porque tudo o que eu sei é teoria e quero ver como as coisas acontecem na prática", diz ele, que ainda não definiu em que área do Direito pretende atuar. Esse valor inclui o equipamento de informática e o local adequado para ele: uma sala-cofre, com controle de temperatura e umidade e sensores para detecção de fogo. Lá bate o coração do juizado, que precisa de muitos cuidados. "Temos um sistema de armazenamento muito moderno, com dez discos. Se qualquer um deles for danificado, pode ser trocado e ter as informações regravadas, porque há uma cópia em cada um dos outros nove", diz Jader Carlos Videira, responsável pelo centro de processamento de dados. E se dois discos apresentarem problemas? Bem, essa é uma possibilidade remota. Se vier a ocorrer, o pessoal do JEF vai perder um dia de trabalho, porque todas as noites é guardada à parte uma cópia de toda a memória (processo conhecido como backup) para que o computador seja recarregado caso ocorra um acidente fatal. |