Harmonia conquistada - Empregados assumem usina falida e garantem sustento para as famílias |
2006. Ano 3 . Edição 27 - 5/10/2006 Aos 11 anos, experiência de autogestão de usina de cana-de-açúcar, em Pernambuco, garante sobrevivência a mais de 3 mil famílias e promove educação e pesquisa Pernambuco já tinha perdido o título de maior estado produtor de açúcar do Brasil quando a Usina Catende apresentou os primeiros sinais de crise, na década de 1990.A própria usina também já não era a maior fornecedora de cana-de-açúcar da América Latina, como no passado. O estopim que levaria à falência veio em 1993,quando 2,3 mil trabalhadores foram demitidos sem nenhuma garantia dos direitos trabalhistas. Mas o resultado da bancarrota não seguiu o curso normal.Depois de uma inusitada mobilização de todos os empregados, a Justiça de Pernambuco acatou a solicitação de quem sairia mais prejudicado. O que aconteceu em seguida foi uma decisão em benefício de trabalhadores rurais e o surgimento de um modelo inédito no país, de gestão compartilhada. Estava criado o projeto Catende-Harmonia de autogestão. História A situação agravou-se ainda mais com o fechamento do IAA, durante o governo Collor.Desprovida dos mecanismos oficiais de apoio e mal gerida, a atividade entrou em colapso. O impacto foi grande na zona rural de Pernambuco, com o fechamento de dezoito unidades sucroalcooleiras e a extinção de 150 mil postos de trabalho. Expulsas do campo, as famílias tornaram- se graves problemas socioeconômicos em dezenas de municípios. Foi nesse contexto que surgiu o projeto Catende-Harmonia, após demissões em massa ocorridas em 1993, estando a usina com um imenso passivo público e trabalhista, além de envolvida em fraudes na execução de credores.Os proprietários ingressaram com o pedido de falência na tentativa de manter a antiga prática de se tornarem liquidantes de suas empresas quebradas. Em outras usinas, esse pedido foi acatado, mas no caso da Catende a Justiça decidiu decretar a falência em benefício dos trabalhadores,que passaram a administrar a massa falida, como forma de garantir os empregos, os direitos trabalhistas e previdenciários, e ainda tentar reverter as fraudes na transferência ilegal de parte da propriedade para outras empresas.Com essa medida, a Justiça interrompeu a relação entre antigos credores e devedores, cabendo a quem se sentisse lesado requerer os créditos judicialmente.
Virada O sistema de autogestão adotado é composto de duas modalidades: na primeira, a produção de cana-de-açúcar é garantida de forma coletiva na maior área da propriedade dos 48 engenhos. É ela que mantém os empregos, os salários e a empresa funcionando.Na segunda modalidade, uma parte menor dos 26 mil hectares da propriedade foi destinada à agricultura familiar, ficando a cargo das famílias produzirem cana-de-açúcar,por meio do projeto Cana do Morador, e outras culturas, como banana e café, além da criação de gado e projetos em andamento, como piscicultura e apicultura.Nessa segunda modalidade, estão 2,2 mil das 3,5 mil famílias que vivem nos engenhos.A população total é de 19 mil habitantes.O projeto ainda gera 1,5 mil empregos permanentes, distribuídos entre o campo e a indústria; 1,4 mil empregos indiretos no período da safra anual e cerca de 980 na entressafra. Elenildo Correia Penha, de 30 anos, filho e neto de agricultor, com mulher e três filhos, tinha 17 anos quando viu o pai ser demitido da Usina, em 1993.Ele é um dos catorze filhos da família que se viu sem destino.“ Foi uma das maiores aflições que passamos. A demissão colocava em risco o futuro de todos nós.”Elenildo mora no Engenho Tombador,orgulha-se de ser um dos credores da usina e de fazer parte da administração. Ele está incluído no projeto Cana do Morador e, junto com a família, cuida de 2,5 hectares de cana mais 1,5 hectare onde planta banana, café e cria abelha para a produção de mel.Também recebe salário fixo.A cana que produz é moída na usina de forma coletiva.As outras culturas ele vende pessoalmente para incrementar a renda familiar. “Hoje, além de um trabalhador, eu me transformei num profissional de conhecimento.Poder participar de uma coisa tão grande como esta já é muito. Eu posso dizer com a maior tranqüilidade que aprendi coisas que muita gente estudada não sabe.Há quem diga até que eu também ensinei alguma coisa.Me orgulha hoje ser um cidadão autogestionário,participativo, dentro da economia solidária,e poder repassar tudo isso aos meus filhos.” A viúva Helena Andrade também gosta da vida que leva.O marido morreu antes de ver a autogestão acontecer.Coube a ela e aos dez filhos participar da construção do novo modelo. Professora aposentada do município de Jaqueira, dona Helena hoje mora apenas com uma das filhas nas terras do engenho Bálsamo da Linha.Os outros filhos vivem com as famílias em engenhos vizinhos. Na terra,ela planta cana-de -açúcar e banana.Também cria treze cabeças de gado.A pequena produção seria impossível em outros tempos.“Na época dos usineiros a gente não podia criar nem plantar nada que não fosse cana.Hoje com o meu gado, eu tenho leite à vontade e ainda vendo para os vizinhos.Aqui,todos se ajudam. A gente trabalha em mutirão de acordo com a safra de cada um.É outra vida.”
Produção Outra forma de garantir o replantio é por meio de financiamento bancário para agricultura familiar.“Já estamos no quarto ano de custeio e investimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf-C) do Ministério do Desenvolvimento Agrário.O crédito é feito diretamente para cada um dos agricultores, no projeto Cana do Morador, auxiliados pela cooperativa.“O crédito é individual porque ainda não há empresa,e sim massa falida”, explica o síndico Andrade.Nos últimos quatro anos, entre custeio e investimento eles já conseguiram operar cerca de 9 milhões de reais.Andrade diz que praticamente ainda não há lucro, mas também não há déficit.“Quando acontece de sobrar alguma coisa, a gente investe em capacitação dos trabalhadores”,conta.Os administradores orgulham-se de sempre cumprir com o pagamento de 100% dos empréstimos e, com isso, ter conquistado crédito e eliminado a desconfiança que havia no passado.“ Quando tudo começou, ninguém queria emprestar dinheiro.Achavam que, se os usineiros às vezes não honravam os compromissos, como é que simples trabalhadores iriam fazer isso? Agora tudo mudou”, comemora Andrade.No último financiamento com o Banco do Brasil, eles conseguiram arrecadar verba para a compra de doze tratores que vão incrementar a colheita.Mesmo ainda não gerando lucros reais,o projeto Catende-Harmonia comemora uma conquista:em uma única safra, a usina gerou 37 milhões de reais, mais do que a soma de todo o Fundo de Participação (FPM) dos cinco municípios onde ela mantém os engenhos. Investimentos O grupo administra uma escola que abriga quatrocentos alunos, filhos de moradores. Cursos de capacitação são freqüentes. Neles,os agricultores aprendem a lidar com créditos, empréstimos e a participar do gerenciamento da indústria.Também são realizados experimentos científicos. Em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia, um grupo de quarenta jovens, filhos de agricultores, entre 17e 24 anos,participam de estudos para o melhoramento da qualidade da cana.Eles tentam desenvolver um produto resistente às pestes que atacam a lavoura.Outro projeto de qualificação profissional na produção e na indústria,em parceria com o Ministério do Trabalho e uma associação que envolve 107 jovens,pretende evitar o êxodo rural e estimular as novas gerações a ter gosto pela terra e saber lidar com ela. O nome da associação não poderia ser mais sugestivo: Puama,que na linguagem indígena significa “rosa que nasce das pedras”.“É o nosso projeto de futuro. São eles que vão continuar o nosso duro trabalho de autogestão”, diz Andrade.Na policlínica gerida pelas mulheres trabalhadoras, são realizados atendimentos voltados para a saúde da mulher e das crianças. O secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, Paul Singer,vê o modelo,ainda em construção, em Catende como um verdadeiro desafio à democracia.“No Brasil, já existem experiências similares depois de Catende, mas nenhuma em grande escala como acontece na usina.Algo parecido só conheço na cidade de Mondragon, no País Basco (província espanhola),onde um modelo de autogestão em grande escala existe há onze anos e hoje é um dos principais grupos empresariais da Espanha.”Paul Singer espera que o exemplo de Catende seja seguido e estimulado.“É preciso vontade política para que outras empresas consigam seguir os caminhos traçados pela Usina Catende.Empresas do campo, da cidade e indústrias, com maior ou menor complexidade.” Ele também acredita que, com a posse das terras,o processo não será revertido.“ Acho que o crescimento será ainda maior.Hoje existe mais liberdade em Catende do que em qualquer outro momento. É graças a esse regime democrático,que é um exemplo para todo o país.A autogestão dá mais do que autonomia ao trabalhador. Oferece a possibilidade real de crescimento individual e coletivo.” Para os administradores da Usina Catende, é nesse sentido que a autogestão caminha, começando pela desapropriação definitiva dos 26 hectares que estão sub judice. Antes eles lutam para reintegrar de fato cerca de oito hectares que foram repassados fraudulentamente a outras empresas. São entraves para o crescimento de um modelo inédito de autogestão, que ainda não tem previsão para ter fim devido aos muitos recursos judiciais.“Enquanto isso não acontece, a gente tem de administrar sem muita expectativa de crescimento, já que ainda não somos uma empresa sadia para competir no mercado. A cada três meses, prestamos contas de nossas atividades à Justiça,com a esperança de que em breve tenhamos a posse definitiva das terras com a reforma agrária.De qualquer forma, só estar participando deste momento e construindo esta história junto a todos os trabalhadores,e ter recuperado a dignidade das famílias,já é um fato diferenciado e importante para nosso estado e nosso país”, conclui, esperançoso,Andrade. |