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De papel passado - Projeto pioneiro regulariza posse de milhares de famílias que vivem em terras da União

2008 . Ano 5 . Edição 42 - 15/04/2008

Por Manoel Schlindwein, de São Paulo

Imagine ser expulso de sua moradia sob a alegação de que ela não lhe pertence mais. Mas como, se o chão em que pisa foi de seu pai e do pai de seu pai? A questão, difícil de aceitar, intrigou a população ribeirinha da Amazônia e o governo federal por um bom tempo. Para garantir o direito de posse de terras de propriedade da União, o projeto Nossa Várzea, de regularização fundiária, já beneficiou cerca de 10 mil famílias na região Norte do país. E sabe quanto isso custou? Apenas R$ 57,47 por cada família beneficiada.

Apesar desse custo ínfimo, não foi uma tarefa fácil. Desalojar uma ou outra família porque o terreno onde vive é propriedade pública já é um problema delicado em espaços com elevado índice de urbanização. Entram em jogo a real necessidade da mudança (não seria mais fácil para o governo construir em outro lugar ou deixar tudo como está?) e a cobrança da sociedade (qual o futuro dos desabrigados?). Mas a questão ganha proporções realmente grandes quando se trata do despejo de uma população espalhada por um território de 8,5 milhões de hectares, o equivalente ao dobro da área total de plantações de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo.

Milhares de famílias inteiras vivem há séculos às margens do curso de longos rios no Norte do país. Rios como o Amazonas e seus afluentes são literalmente fonte de vida: é nas suas águas que retiram o sustento, tanto para a venda de peixes no mercado como para a própria alimentação. O local possui um rico ecossistema, mas também é marcado por uma enorme fragilidade social, agravada pela ausência de infra-estrutura e da presença do Estado.

Os moradores se instalaram e mantiveram seus costumes simples por gerações. Quando o mundo moderno chegou, com suas leis e ordens de despejo, eles se viram ameaçados. Seguida ao pé da letra, a situação poderia ganhar contornos bélicos, até com a criação de mártires, como ocorreu com o líder seringalista Chico Mendes. Felizmente, a alternativa veio por meios pacíficos e já apresenta resultados positivos.

REDEFINIÇÃO Em 2004, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), subordinada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, passou por uma redefinição institucional. Alexandra Reschke, titular da SPU, relembra que primeiro foi implantado um novo modelo de gestão de patrimônio comum dos brasileiros. A idéia, explica, "é garantir que cada imóvel da União cumpra sua função socioambiental em harmonia com a função arrecadadora e em apoio aos programas estratégicos da nação".

A Constituição federal de 1988 definiu que toda propriedade deve cumprir uma função social e o Estatuto das Cidades regulamentou esse princípio. Na prática, isso quer dizer que um imóvel público vazio ou subutilizado não cumpre sua função socioambiental porque sua destinação original era estar a serviço de algum uso. "Não havendo a demanda de algum órgão do serviço público federal naquele local ou de algum programa do governo, o imóvel deve ser oferecido aos governos estadual ou municipal. O importante é que sirva para aquilo que é o seu princípio: uma função pública", observa Alexandra.

O que estava em jogo era a inversão de uma lógica histórica, marcada pela predominância de princípios patrimonialistas e modelos de gestão cartorial. A mudança, explica Alexandra, demandou contato ininterrupto com vários setores do governo federal, além da construção de parcerias com prefeituras e governos estaduais. O objetivo era estabelecer práticas compartilhadas de gestão do patrimônio da União.

O desafio não era fácil, mas em 2005, no Pará, as idéias saíram da prancheta e ganharam forma com o Projeto Nossa Várzea - Regularização Fundiária em Áreas de Várzeas, desenvolvido pela SPU através da Gerência Regional do Patrimônio da União no Estado do Pará (GRPU/ PA), às margens dos rios "federais" - aqueles que excedem as fronteiras de um só estado.

SEMINÁRIOS Em se tratando de Amazônia, não poderia ser diferente: a missão dependeu quase que exclusivamente do uso de barcos. Para promover seminários de conscientização e esclarecimento com as comunidades locais, técnicos atravessaram incontáveis quilômetros em pequenos barcos impulsionados por motores de popa. Assim, em agosto de 2005, foram realizados dois seminários, um em Belém e outro em Santarém, reunindo lideranças da sociedade civil, associações de ribeirinhos e representantes dos estados do Pará, Amapá e Amazonas.

Foi preciso caracterizar o enquadramento legal das várzeas rurais e identificar seus ecossistemas, estabelecer metas e cronogramas para o projeto e, mais importante, definir uma metodologia de regularização fundiária. Isso tudo sem esquecer a promoção de uma harmonia entre órgãos das instâncias municipal, estadual e federal - além da sociedade civil.

Os encontros foram oportunos não apenas para resolver a questão fundiária, mas também para colocar em pauta outros problemas vividos pelos moradores, conta Neuton Miranda, gerente regional do Patrimônio da União no Estado do Pará. Os diálogos deram vazão à proposição de saídas para questões como a pressão, por parte dos grileiros, para que os ribeirinhos partilhassem a colheita, sob a pena de expulsão de seus lares.

Havia ainda outro problema típico a ser enfrentado. Sem endereço físico ou comprovação de posse, as famílias não tinham acesso sequer aos programas de inclusão social do governo, como o Bolsa Família. Mas os seminários não ficaram só no bate-papo. Pelo contrário, de lá saiu a chave do projeto, o instrumento legal capaz de garantir, como define a SPU, a sustentabilidade das ações agroextrativistas pelas comunidades ribeirinhas nas áreas de domínio da União.

Trocando em miúdos, a Portaria 284, de 14 de outubro de 2005, criava o Termo de Autorização de Uso, uma forma inovadora de garantir a posse da terra aos moradores. Pela primeira vez cortavam-se as amarras da burocracia e dava-se uma alternativa com amparo legal à população ribeirinha.

MARATONA Após os seminários, o dia-a-dia do trabalho das equipes da SPU e dos demais parceiros voltou-se à sensibilização da comunidade para adesão ao Termo de Autorização de Uso. Eles foram conversar com prefeitos, secretários municipais e estaduais e representantes do movimento sindical, além de esclarecerem a população através da mídia (especialmente pelo rádio). O ponto decisivo, no entanto, foram as reuniões locais com os moradores. Nelas foram realizadas palestras de orientação e tira-dúvidas com servidores da GRPU/PA envolvidos no projeto.

Ao final dos encontros todas as famílias presentes eram cadastradas - em muitos casos, o número de interessados passou de 180. Embora tenham acabado bem, os encontros nem sempre foram tranqüilos. O coordenador do projeto Nossa Várzea no Pará, Lélio Costa da Silva, lembra que capangas de grileiros da região sempre estavam à espreita, monitorando a movimentação dos agentes do governo. Desconfiados, queriam saber qual o destino das terras. "Muita gente humilde vive lá. Há uma espécie de escravidão branca no local, onde tudo que é produzido é levado ao grileiro em troca de deixálos morar nas palafitas", diz.

De posse do endereço das famílias, as equipes partiram para visitá-las. Foram várias rodadas de esclarecimentos, além da identificação de um ponto georreferenciado do local, com o auxílio de aparelhos de GPS, e fotos dos documentos dos responsáveis. Por fim, outra foto, desta vez da família inteira, reunida em frente da residência, como forma de registrar a ocupação. A etapa final consiste no preenchimento de dois documentos: o requerimento para emissão do Termo de Autorização de Uso e declaração da licença do órgão ambiental competente.

Como coordenador do projeto no Pará, Neuton Miranda visitou todas as cidades já atendidas e pôde observar as demandas da população após conversar com vários moradores. "Em muitos casos, era a primeira vez que alguma instituição do governo federal, qualquer uma, ia visitá-los. Nem mesmo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) havia passado por ali", recorda Miranda, tentando contabilizar as centenas de horas passadas dentro de barcos cedidos por prefeituras da região, em especial no arquipélago de Marajó, no Pará.

PALAFITAS O que lhe chamou mais a atenção? Nenhum dos moradores visitados vive em casas normais, tal qual os habitantes das cidades conhecem, com tijolos e telhas. "São sempre palafitas. E fotografamos todas elas: temos um acervo gigantesco, com mais de 12 mil fotos, só de famílias morando em palafitas", afirma.

Uma das maiores dificuldades do trabalho de Miranda e sua equipe residia justamente na logística. Uma vez que a região não dispõe de uma boa infra-estrutura rodoviária, as distâncias são vencidas pelos barcos, extremamente lentos se comparados a outros modais. Para se ter uma idéia, a alternativa encontrada pelos técnicos para visitar os moradores de Afuá, no Pará, partindo de Belém, foi ir até Macapá, no Estado do Amapá, de avião, e então usar barcos para vencer o restante do percurso.

"Foi assim que resolvemos o problema das longas jornadas que, em alguns casos, chegaram até 28 horas de barco", conta o gerente. Mas quem ficava fora do avião era obrigado a vencer as enormes distâncias cruzando os rios da região. "É um caminho selvagem, literalmente. No caminho, a gente vê várias cobras e outros animais. A sorte é que a maioria deles tem hábitos noturnos e nosso trabalho é feito apenas durante o dia", relembra Costa da Silva, que foi de Belém a Anajás em 40 horas.

Miranda e Costa da Silva não estavam sozinhos. Os trajetos principais eram cumpridos em barcos maiores, com capacidade para transportar quase duas dezenas de pessoas. A fim de compartilhar conhecimento e capacitar outros servidores públicos, profissionais de outros estados do país foram convidados a participar do projeto (tão logo encerraram as atividades, eles receberam a missão de implantar o Nossa Várzea em suas regiões). Ao se aproximarem das cidades de destino, barcos menores, com até três tripulantes, davam seqüência às atividades.

O site da SPU aponta o que é necessário para uma família ribeirinha agroextrativista poder ingressar no projeto. Ela deve obedecer aos seguintes critérios: possuir uma casa no lugar da ocupação (tapiri, barraco, etc.), em que efetivamente resida, há pelo menos cinco anos, de forma pacífica, e de onde retire a maior parte do seu sustento; dedicar-se à atividade agroextrativista, durante a maior parte do tempo; e possuir o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e documento de identidade.

CADASTRO O trabalho das equipes se encerra em escritórios cedidos pelos municípios. Lá, os cadastros são organizados e os Termos de Autorização de Uso são finalmente emitidos. Documentação pendente ou qualquer outro tipo de problema também são resolvidos ali.

Em cerca de dois anos, quase dez mil famílias de oito municípios do Estado do Pará foram beneficiadas. Todas ganharam o "Termo de Autorização de Uso para o Desbaste de Açaizais, Colheita de Frutos ou Manejo de Outras Espécies Extrativistas", nome do documento, que leva em conta a abundância dos recursos naturais presentes na região e o meio de sobrevivência dos ribeirinhos.

Até dezembro deste ano, deverão ser cadastrados 20 mil moradores da região do arquipélago de Marajó. Encerrada esta etapa, o projeto terá seqüência no Estado do Amazonas. A expectativa da SPU é de que, até o final de 2010, cerca de 40 mil ribeirinhos tenham suas terras regularizadas perante a União. "É uma iniciativa pioneira, inovadora, que dá muito trabalho, mas traz enorme realização, especialmente por sabermos que estamos trazendo o Estado para a vida dessas pessoas", resume Miranda.

Tamanho esforço demandou da SPU a conquista de diversas parcerias. O resultado não poderia ser melhor: muitos órgãos envolvidos aproveitaram as viagens para cadastrar as famílias em outros programas dos governos federal, estadual e municipal. "O que reparamos é que agora, com a possibilidade de apresentar endereço fixo, os Correios estão chegando aqui e muitas famílias aderiram ao Programa Bolsa Família", conta Miranda.

QUEM PAGA Como o Nossa Várzea é um projeto barato, no primeiro ano, em 2006, todos os custos foram bancados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), subordinado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O montante desembolsado foi de R$ 166 mil e o número de famílias beneficiadas foi de 2.886. De lá para cá, o governo federal passou a contribuir com cerca de 20% dos recursos e o restante é pago pelos estados e municípios.

A divisão dos custos entre os envolvidos no projeto é mais uma das qualidades do Nossa Várzea, que prima pela gestão compartilhada. Este fator, aliado ao fim dos entraves na obtenção do termo de autorização, não passou despercebido. Não custou muito e a ação pioneira do Ministério do Planejamento foi reconhecida nacionalmente. Em março deste ano, o Nossa Várzea ganhou o terceiro lugar na 12ª edição do prêmio de Inovação na Gestão Pública Federal da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), à frente de projetos de grande apelo popular, como o Portal da Transparência, da Controladoria Geral da União.

O troféu não coube apenas aos méritos alcançados na região marajoara. Em setembro do ano passado, de posse do que aprenderam no Pará, técnicos do Amapá foram a campo regularizar a vida de moradores da região: de lá para cá já foram cadastradas 117 famílias. "Esperamos fortalecer as parcerias locais para podermos fazer um levantamento completo da demanda", diz a coordenadorageral de projetos especiais do Ministério do Planejamento, Simone Gueresi.

Duas peculiaridades chamam a atenção de quem não conhece o local, lembra a gerente regional da SPU do Amapá, Liely Gonçalves de Andrade. Primeiro, apesar da imensa faixa litorânea, as terras não são banhadas pelo mar e sim pelas águas do rio Amazonas, tamanha a sua vazão. Depois, no período de chuvas, entre janeiro e abril, as cheias são tão volumosas que o trabalho é interrompido.

ESPERANÇA O trabalho começou em outubro de 2007, quando a SPU visitou uma a uma as palafitas de madeira com telhado de palha às margens do rio Amazonas. "Desenvolvemos um trabalho muito bonito, de inclusão social dessas pessoas. Trazemos para elas mais do que dignidade, trazemos esperança", afirma Liely Andrade.

Sucesso no Norte, o projeto se espalhou para o Nordeste e o Sudeste. Em Ubatuba, no litoral paulista, onde há enorme pressão imobiliária, oito ranchos de pescadores já ganharam o termo de uso. Com isso, os trabalhadores têm garantido um lugar seguro para guardar seus barcos e equipamentos. Na Bahia, o governo federal delimitou uma faixa de 15 metros a partir das margens do rio São Francisco, chamada de Linha Média das Enchentes Ordinárias.

É a partir dela que o Nossa Várzea será implantado na região. Haverá uma diferença importante: em vez de entregar às famílias o Termo de Autorização de Uso, elas vão receber uma Concessão de Direito Real de Uso, que permite a transferência da propriedade.

 
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