2007 . Ano 4 . Edição 38 - 10/12/2007
Por Yolanda Stein, do Rio de Janeiro
A sonhadas férias na Disneyworld, aeroportos entupidos de turistas apesar da crise aérea, vinhos, champanhes, castanhas e nozes mais acessíveis para o Natal. São facilidades que fazem a festa da classe média em períodos de dólar barato, como o atual. Este é o lado mais visível da política de câmbio flutuante instituída pelo Banco Central em 1999. De outubro de 2002 até agora, houve uma valorização efetiva do real de 59%, sendo 16% somente este ano, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A questão que se coloca é se o atual modelo econômico baseado no câmbio valorizado e juros altos, adotado como remédio para manter a inflação baixa, não irá, a longo prazo, matar o doente, especialmente no caso de uma reversão (para muitos, não tão distante) do auspicioso cenário internacional, seguida de um novo ciclo de evasão do capital estrangeiro.
Outra interrogação é se este modelo atende aos interesses da economia e da sociedade como um todo. Herói ou vilão, dependendo do ponto de vista e certamente dos interesses envolvidos, o real forte se,por um lado, vem contribuindo para conter a escalada dos preços (a inflação deve ficar abaixo da meta de 4,5% em 2007), por outro, tende a prejudicar o setor exportador manufatureiro, que estaria perdendo competitividade no comércio internacional, do qual o Brasil participa com o pífio índice de 1%.
Para este ano, há expectativa de um superávit comercial de US$ 40 bilhões e um crescimento econômico em torno de 4,5% (5,5% na indústria), que, embora baixo em relação a outros países, deve resultar em impacto positivo sobre o nível de emprego. Apesar de o saldo da balança ser significativo, o ritmo de aumento das importações (29,2% de janeiro a outubro de 2007) tem superado o das exportações (15,9%), gerando insegurança quanto ao futuro do balanço de pagamentos.
DÉFICIT O diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea, João Sicsú, alerta para o risco de um déficit no saldo de transações correntes já em 2008, se o câmbio permanecer valorizado e a economia continuar crescendo."Este é o ponto frágil no front externo de defesa da economia brasileira", constata.
O déficit em transações correntes em função do contínuo aumento das importações pode resultar em perda de reservas, seguida de uma possível desvalorização cambial e, no futuro, estimular uma fuga de capitais, analisa Sicsú. Câmbio valorizado com crescimento econômico é, sem dúvida, uma combinação perigosa. O Brasil está perdendo um dos seus quatro pilares de defesa econômica: reservas elevadas, dívida externa reduzida, investimento direto estrangeiro em volume significativo e saldo positivo em transações correntes.
Apesar do cenário macroeconômico positivo, a taxa de juros ainda é alta (11,25%) em relação a outros países, atrás apenas da Turquia (17,5%) e muito acima da dos asiáticos, como Malásia (3,5%), Coréia (4,6%) e China (4,06%), ou da vizinha Argentina (6,7%), atraindo capital de fora. Estes países combinam câmbio competitivo com elevadas taxas de crescimento. No Brasil, embora o Banco Central esteja formando reservas (US$ 170 bilhões), o custo é alto (pelo diferencial das taxas de juros interna e externa) e ainda assim o câmbio se valoriza. E como as exportações estão crescendo a uma velocidade menor do que as importações, não há outro motivo para a valorização cambial que não seja a vigorosa entrada de dólares pela conta financeira, explicam os economistas.
FARRA CAMBIAL Nem a depreciação mais acentuada do dólar em relação a outras moedas como o euro e o iene altera o impacto da valorização do real frente à moeda americana no que se refere à competitividade das exportações brasileiras."Apesar de o real ter se apreciado menos frente a outras moedas do que ao dólar, as exportações continuaram sofrendo um processo de perda de competitividade e de rentabilidade, sendo falacioso o argumento de que não são afetadas pela valorização recente do real frente ao dólar, porque este está também depreciado em relação a todas as demais moedas do mundo", avalia o professor José Luis Oreiro, do Departamento de Economia da Universidade federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
"Não nos iludamos: o câmbio está se apreciando de forma bastante pronunciada e, mais cedo ou mais tarde, vamos pagar a conta dessa 'farra cambial'. Talvez não por intermédio de uma crise cambial, mas certamente por uma redução significativa da diversificação da estrutura industrial, com reflexos negativos sobre o crescimento de longo prazo da economia brasileira", afirma.
CONFIANÇA O fato de a moeda nacional estar muito valorizada em relação ao dólar (R$ 1,794, em 3 de dezembro) e os sinais de uma possível retração da economia americana não são motivos de alarde para economistas como o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, sócio da Tendências Consultoria Integrada. Entusiasta da atual política cambial, ele critica "a tendência de certas pessoas a olhar sempre pelo lado negativo".
Maílson da Nóbrega atribui o fluxo crescente de investimentos estrangeiros diretos e para o mercado de capitais à solidez dos atuais fundamentos econômicos, aliada à confiança na estabilidade e no potencial da economia."O risco-Brasil está num nível melhor do que se pensava e os mercados estão antecipando os efeitos da provável obtenção do grau de investimento esperado para 2008."
Outros fatores citados como positivos são o país ter se tornado "estruturalmente superavitário"em comércio exterior e a isenção do Imposto de Renda aos investidores estrangeiros que aplicam em títulos públicos.
Para o ex-ministro, não tem força a tese de que os juros seriam a causa da valorização cambial. Exemplifica que nem mesmo a queda das taxas nos últimos dois anos diminuiu a entrada de capitais,que deve passar de US$ 80 bilhões. E que o dólar canadense se valorizou acima do real este ano, apesar de o país ter juros baixos."No conjunto, o fluxo de capital é o maior fator da valorização. O dinheiro que entra, ao contrário do que se fala, não é especulativo e vem atraído pela estabilidade econômica."
Ele também vê com bons olhos os efeitos do real forte sobre a indústria, uma vez que os empresários podem aproveitar a valorização para importar bens de capital, se modernizar, aumentar sua capacidade produtiva e se preparar para uma concorrência mais severa em mercados abertos.
CRESCIMENTO Outro economista confiante nos bons resultados do fortalecimento do real é Marcelo Nonnenberg, pesquisador do Grupo de Análise e Previsões (ex-Grupo de Conjuntura) do Ipea. Depois de relembrar que o Brasil, historicamente, sempre teve o crescimento barrado por crises externas, afirma que, após a adoção da política de flutuação cambial, o país vem apresentando crescimento crescente. E conseguiu resistir à crise externa de 2002, quando o dólar ultrapassou R$ 3,00, sem precisar recorrer à ajuda externa. Em termos de comparação, ele mostra que, apesar da valorização de 59% do real entre outubro de 2002 e outubro de 2007, a taxa hoje está 22% mais depreciada do que a média do período 1995/1998.
"Esperava-se um retrocesso nesse valor, porém o real se fortaleceu além da expectativa, provocando queixas por parte dos setores exportadores.Mas se o câmbio fosse tão desfavorável, como alguns querem fazer crer, as exportações já teriam sentido, porque desde 2003 a taxa vem se valorizando fortemente", argumenta Nonnenberg. E cita como exemplo a média diária das exportações, que passou de US$ 120 milhões para US$ 330 milhões entre 2002 e 2007, um crescimento superior à média mundial. Segundo ele, não apenas as vendas externas dos produtos básicos subiram, beneficiadas pela alta dos preços das commodities no mercado internacional, como os manufaturados também ganharam maiores fatias de mercado a partir de 2005, período de intenso fortalecimento do real.
Considerando este cenário, diz que para setores que exportam muito e também importam a taxa de câmbio tem menor influência. Para estes, o crescimento da demanda mundial e a competitividade de suas empresas são mais importantes. Já aqueles mais afetados pelo câmbio puderam investir em inovação tecnológica, de forma a obter ganhos de produtividade que lhes permitiram compensar parcialmente a valorização cambial. Admite, no entanto,que quanto mais a moeda ganha valor, os efeitos negativos sobre as exportações são mais significativos.
Nonnenberg aponta também o outro lado da moeda: "A taxa flutuante contribuiu de forma substancial para conter a inflação, permitindo ao Banco Central reduzir os juros de 2003 até agora. Se o câmbio permanecesse em torno de R$ 3,00, a redução dos juros, provavelmente, teria sido menor.A queda das taxas trouxe benefícios para a economia e para a sociedade como um todo, como o aumento da renda real. Também o expressivo saldo comercial permitiu o acúmulo das reservas internacionais, que estão na casa dos US$ 170 bilhões".
Assim como o ex-ministro Maílson da Nóbrega, o pesquisador do Ipea diz que o Brasil está menos vulnerável e razoavelmente protegido de uma crise internacional. "Essa política tem um custo, mas na balança o resultado foi benéfico",assegura. E deixa uma interrogação: "Se o câmbio não estivesse nos níveis atuais, teria havido maior crescimento da economia?".
FRAGILIDADES Ao contrário dos que apostam na menor vulnerabilidade da economia a choques externos, eleva-se a voz dos que apontam a fragilidade do atual modelo e criticam a dependência do país à entrada líquida de capitais, questionando se os custos da valorização cambial não estariam excedendo suas vantagens. Entre esses custos citam a erosão gradual das contas externas, prejuízos para a atividade industrial, redução da competitividade dos produtos de exportação, substituição da produção nacional por importações e até a transferência de processos produtivos para o exterior com efeitos negativos sobre o crescimento e o emprego.
Economistas e entidades representativas da classe empresarial, como a Associação dos Exportadores do Brasil (AEB), o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) batem na tecla da necessidade de queda nos juros e depreciação da moeda nacional,de forma a estimular investimentos, aumentar o ritmo de crescimento e erguer uma muralha para barrar a recessão, no caso de os bons ventos da economia mundial deixarem de soprar.
Segundo José Augusto de Castro, vice- presidente da AEB, a manter-se o atual cenário econômico, as projeções indicam para 2008 um aumento de 15% nas importações e de 6% nas exportações, com o superávit de apenas US$ 30 bilhões, apontando para um possível déficit na balança de transações correntes.
Júlio Sérgio Gomes de Almeida, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultor do Iedi, afirma que o câmbio valorizado deprime o investimento, especialmente em setores intensivos de capital, as grandes empresas, que apenas estão completando projetos iniciados em anos anteriores, com base em outro quadro cambial. "O boom dos investimentos na economia é coisa do passado, principalmente considerando- se aqueles estratégicos, planejados a mais longo prazo. O que temos são adaptações das empresas dos diversos setores ao crescimento da demanda", comenta.
Mudança importante, segundo ele, é o fato de a economia, que vinha crescendo menos por conta do câmbio valorizado, estar apresentando bons resultados, com previsão de taxa de crescimento de até 5% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2007."Pela primeira vez,uma valorização importante da moeda nacional não irá afetar o setor industrial, que deve crescer 5,5% este ano, em comparação aos 3% registrados em 2006", afirma Almeida. Mas alerta que o maior dinamismo do mercado interno, contrabalançando perdas com as exportações, pode não ter sustentação por muito mais tempo: "O efeito acelerador do crédito ao consumidor, que vem crescendo 20% ao ano, há três anos, pode cessar, e aí o câmbio volta a desestimular os investimentos".
"Comenta-se que a valorização cambial é inexorável, mas tanta valorização certamente não é inexorável. Os investimentos poderiam ser muito maiores se o câmbio fosse adequado", diz
GENOCÍDIO Outra voz no debate é a do professor José Luis Oreiro. É categórica sua avaliação do atual modelo econômico: "Trata-se de uma política deliberada de genocídio do empresariado nacional".
Isso se dá porque juros elevados reduzem investimentos produtivos e deprimem a competitividade e a lucratividade do setor exportador. Ele relembra que, apesar do aumento das exportações brasileiras nos últimos cinco anos, a participação do país no comércio internacional hoje (1,1%) é inferior à registrada em 1985 (1,3%).Ou seja, as vendas cresceram menos do que a média do resto do mundo. "Dessa forma, a demanda externa perde força como possível fonte de aceleração do crescimento da economia brasileira."
Ao argumento de que as empresas tendem a se modernizar tecnologicamente de forma a ganhar maior competitividade nos mercados externo e interno, ele rebate: "A taxa real de câmbio tem se apreciado cerca de 20% ao ano desde 2003. Não há inovação tecnológica ou esforço de modernização que consiga superar isso.Mudanças nas taxas de câmbio são quase sempre fortes e rápidas demais para permitir que as empresas se adaptem". Segundo Oreiro, se o Brasil não quiser ficar para trás na corrida do crescimento, precisa manter e ampliar o grau de diversificação de sua estrutura industrial.Para isso é necessário,embora não seja suficiente, manter uma taxa de câmbio competitiva. O câmbio muito valorizado resulta na especialização da estrutura produtiva, com riscos de novas perdas do dinamismo das exportações nos próximos anos,diz.
O professor da UFPR defende um modelo macroeconômico que possa desatar o nó da combinação juros elevados e moeda valorizada, que reduz as possibilidades de expansão das exportações e do investimento. Um modelo que tenha como objetivo o crescimento econômico com estabilidade de preços. E, para evitar uma aceleração prolongada da inflação, sugere um ajuste fiscal de longo prazo,com a contenção dos gastos de consumo corrente do governo.Seu foco recai sobre a China."Este país, assim como Índia e Coréia do Sul, tem crescido a taxas muito superiores às brasileiras, aliando estabilidade de preços e juros relativamente baixos."
|