Uma escola de raiz - O sucesso de uma experiência pedagógica feita num assentamento no interior paulista |
2005. Ano 2 . Edição 10 - 1/5/2005 No interior de São Paulo uma experiência pedagógica atrai estudantes e seus familiares, é gratificante para os professores e recebe o reconhecimento da Fundação Getúlio Vargas. Para aprender proporções, a turma do professor Marcos Sônego teve de descascar e lavar mandioca, produzir e embalar farinha e polvilho. A mandioca foi pesada com casca e descascada para verificar qual a fração do peso que corresponde à casca. Depois de batida, coada e prensada, a mandioca virou pó e os alunos calcularam quantos quilos de raiz são necessários para produzir 1 quilo de farinha. Na hora da embalagem, as crianças viram quantos sacos foram usados para acomodar a produção. Por fim, o melhor momento: avaliar o preço da farinha e ver quanto se pode ganhar com aquela quantidade de mandioca e com o trabalho para transformá-la. "Ensinar assim é diferente de ficar só no giz e no quadro-negro. É palpável. As crianças entendem muito mais", diz o professor Sônego, que chegou à escola no início deste ano. A partir de então, buscou-se uma forma de aproximar o ensino do mundo dos estudantes. A experiência deu certo. Desde que foi implantada a nova política didático-pedagógica, a evasão escolar caiu muito. Em alguns casos desapareceu. Na Hermínio Pagotto nenhum estudante abandonou o colégio desde o início de 2004. Ali a palavra de ordem é valorizar o homem do campo, seu ambiente e seu trabalho. Fazer com que os alunos sintam orgulho do que são. Aliás, essa é uma das características da Escola do Campo: as crianças não estão sempre muito limpinhas. Mas por ali ninguém se importa com isso. Para conviver com tanta informalidade, até mesmo a mestra teve de se adaptar. "Antes eu parecia uma madame, agora venho trabalhar com roupas esportivas e ainda tenho de lavar os pés no final da aula", conta a professora Carla Regina Jellmayer, enquanto tenta controlar a criançada na horta. A colheita foi feita no horto medicinal, entre pés de camomila, hortelã, boldo e outras plantas corriqueiras em qualquer compêndio de remédios caseiros. O horto medicinal faz parte do projeto e tem o importante papel de preservar o conhecimento popular em relação às ervas com poder curativo. Parece que está dando certo. E seu efeito também extrapola os limites do colégio para chegar até as casas das famílias. Comunidade Esse ponto é fundamental para o sucesso do projeto: o envolvimento da comunidade. "Em nossas reuniões comparecem, em média, 80% dos pais", conta orgulhosa Adriana Morales Caravieri, a diretora, uma mulher de modos suaves e tranqüilos. A presença dos familiares não se restringe às reuniões. Eles são convidados a participar das aulas e a ensinar o que sabem. Uma das áreas mais freqüentadas pelos parentes das crianças é a cozinha experimental, que também serve para aulas práticas e teóricas. Uma avó esteve recentemente por lá explicando como depenar e preparar um frango, que acabou transformado no almoço da criançada. Pouco antes, o mesmo frango tinha sido modelo numa aula de anatomia no laboratório de ciências. O próprio coordenador pedagógico municipal da Secretaria de Educação, Carlos Alberto Pereira, se incumbe de comprar corações de boi em abatedouros para serem utilizados nas aulas de circulação sangüínea. Pode parecer um pouco assustador para quem vive nos apartamentos das grandes cidades, mas está em perfeita harmonia com o ambiente. E alguns querem ir ainda além. Alexandre Luiz de Freitas, que foi coordenador pedagógico durante o desenvolvimento e a implantação do modelo Escola do Campo, espera que um dia o frango seja substituído por um porco, que, além de ter uma anatomia mais próxima da humana, seria um banquete para todos. Depois de degustar as delícias que saem da cozinha experimental, as crianças escrevem as receitas nas aulas de Português. "Procuramos resgatar algumas antigas receitas de família que estão se perdendo ao longo do tempo", conta a diretora. Aliás, seus esforços ultimamente estão concentrados no aprimoramento das aulas ministradas nesse recinto. Seu desejo é conectar os computadores da escola à internet. O que parece simples para qualquer colégio de cidade é muito difícil para quem está instalado no meio de um assentamento rural, a 25 quilômetros de Araraquara. Ali não há cabeamento e o único telefone funciona via satélite. A forma mais adequada de colocar a escola na rede é via ondas de rádio, mas os equipamentos são muito caros. Diferentemente do que ocorre em outras escolas rurais, há uma classe para cada série, inclusive uma turma de ensino infantil para os pequenos de 4 e 5 anos. Além disso, o ensino fundamental foi expandido para nove séries, divididas em três ciclos de três anos cada uma. O resultado é que a maior turma da escola tem somente 22 alunos, muito menos do que as classes das escolas municipais normais, que chegam a ter 50 cadeiras ocupadas numa sala. Mas essa ameaça não paira mais sobre os alunos da Hermínio Pagotto. A equipe docente é apaixonada pela escola, e muitos já recusaram convites para trabalhar na cidade. Raquel Baraldi, professora do 3º ano do primeiro ciclo, formada em Biologia e Pedagogia, garante que não abre mão de seu lugar na Escola do Campo. Como seus colegas, Baraldi passou por um treinamento para conhecer a proposta didática e o universo em que vivem os alunos. Por isso, apesar de ter nascido e crescido no meio urbano, sente-se perfeitamente à vontade enquanto observa seus pequenos alunos espalhando sementes de feijão em diferentes elementos: pedra, areia, terra e terra adubada. Eles vão cuidar dos brotinhos para ver qual deles cresce mais saudável. Cooperativa Foi da professora Baraldi a idéia de criar uma minicooperativa no colégio. Os alunos trazem sementes de casa e, com material fornecido pela escola, produzem artesanato para ser vendido em feiras e bazares. São quadrinhos, colares, pulseiras e chaveiros. No momento, os estoques estão em baixa, porque a produção fez muito sucesso em uma feira realizada em Boa Esperança do Sul, cidade vizinha a Araraquara. O dinheiro arrecadado é destinado à aquisição de material e também de brinquedos e jogos escolhidos pelas crianças que são usados na escola. Além de se dedicar ao artesanato, os estudantes acompanham a administração da cooperativa e aprendem a fazer a contabilidade para ver se o negócio está valendo a pena. "A idéia é que futuramente eles possam, talvez, criar uma cooperativa no assentamento", diz a diretora Caravieri. "Eles conseguiram superar dezenas de obstáculos e criaram um estabelecimento de ensino de qualidade, que respeita o homem do campo e é absolutamente inovador na forma de educar", explica Hironobu Sano, um dos avaliadores da FGV. Para definir o destino que seria dado ao dinheiro do prêmio, foram feitas consultas ao conselho da escola, composto de administradores, professores e alunos - em obediência a um dos princípios básicos da escola (leia quadro na pág. 73), o da gestão democrática e participativa. O problema é que, como sempre, a lista de compras supera de longe o dinheiro em caixa. Maria do Carmo Boschiero, diretora do departamento de educação da Secretaria de Educação, conta que a relação inclui equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos, material de construção, material para confecção de artesanato e, como não poderia deixar de ser, ferramentas e insumos agrícolas. "Está muito difícil decidir o que fazer, mas queremos comprar coisas significativas, que deixem uma lembrança do prêmio. Algo como uma máquina fotográfica digital para registrar os acontecimentos da escola e talvez a construção de um campo de futebol com traves e redes." Ao contrário do que se possa imaginar, não há espaço para campinhos no assentamento. Onde todos vivem da terra, qualquer área é preciosa. Por isso, a quadra é um dos locais de lazer para a comunidade. E também nas salas de aula as notas dos estudantes da Escola do Campo superam as de seus colegas da cidade - mais um indicador de que o modelo didático está conseguindo mudar a imagem da escola rural. Enquanto correm entre o tanque onde estão as mudas e o local de plantá-las, eles vão pegando uns nos outros, deixando as marcas de suas mãozinhas carimbadas nas roupas. Bem perto dali, sob um sol a pino, há uma gritaria. Um dos alunos da turma do primeiro ano do segundo ciclo pegou uma mangueira para regar a horta e, como era previsível, decidiu molhar os colegas. Com isso interrompeu o trabalho concentrado de um grupo que se dedicava a retirar a erva daninha da plantação e provocou protestos. Como as crianças sabem o que deve ser arrancado? Gabriel Mendes Batistini, de 9 anos, define sem hesitar: "Mato é o que a gente não come". A alguns metros, outra turma observa com atenção, na cozinha experimental, o trabalho de uma voluntária que está preparando pão caseiro. Olhos nas mãos da cozinheira e pensamentos voltados para o estômago enquanto aprendem e esperam a hora da merenda. Na biblioteca, os mais novinhos, da classe de educação infantil, compenetrados como se soubessem ler, apreciam as figuras e se familiarizam com o manuseio dos livros. |