Alrich Nicolas - "Não é somente a solidariedade internacional que vai fazer avançar a reconstrução do Haiti" |
2011 . Ano 8 . Edição 65 - 05/05/2011 Por Bruno de Vizia e João Claudio Garcia - de Brasília
Desenvolvimento - O que é o Haiti além do estereótipo da pobreza? Nicolas - Você tem razão em falar deste estereótipo, porque é o que define o Haiti na imprensa internacional, que sempre diz "o Haiti, o país mais pobre deste hemisfério", ou "60% da população sobrevive com menos de um dólar por dia", mas isto é apenas uma apreciação estatística, e não quer dizer nada sobre a pobreza no país. Penso que quando analisamos a pobreza no Haiti e sua dinâmica, vemos que ela existe, mas frequentemente nos esquecemos de falar da produção de riqueza. Temos que falar também dos recursos e seu controle, por isso no Observatório consideramos importante analisar a política macroeconômica, porque é esta política que decide sobre a alocação dos recursos. A pobreza tem a ver também com a distribuição de recursos. Não é questão de discutir ou não se o Haiti é pobre, mas de discutir também como os recursos são alocados na sociedade, em primeiro lugar, e como ela trabalha para produzir riqueza e a reparti-la de modo mais justo, em um segundo momento. Então há uma relação histórica da pobreza com a exclusão social, e a análise não pode ser somente sobre a pobreza, porque as duas caminham juntas. Se você analisar a pobreza no Haiti vai ver que os mais pobres são os mais excluídos, seja do sistema de produção, educacional, de saúde. Um combate contra a pobreza é acima de tudo combater a exclusão social, e pela inclusão das populações que foram historicamente excluídas do processo de produção e repartição dos recursos no Haiti. Quando um jornal diz que o Haiti é o país mais pobre, poderia dizer também que é o país na qual a exclusão social foi mais forte.
Desenvolvimento- Como está a vida econômica do país, o que é possível produzir em um país que foi devastado por uma catástrofe? Como será a reconstrução e o que está sendo feito nesse sentido? Nicolas - Os efeitos do terremoto no Haiti causaram uma destruição econômica importante, reduzindo o PIB (Produto Interno Bruto) do país entre 2009 e 2010. O que acontece é que 60% da economia do país se concentram em Porto Príncipe, que foi a cidade mais atingida, e o que reflete também a distribuição desigual da riqueza sobre o território. Os efeitos do terremoto sobre a população são conhecidos, o número de mortos, mas há também empresas que foram destruídas ou avariadas, prédios públicos que foram arrasados, e temos que considerar todos estes fatores. O que estamos discutindo agora é como fazer da reconstrução um momento para unir todos os haitianos, de federalizar a solidariedade, para ir além da reconstrução. E esta deve refletir uma nova organização do território, para evitar esta concentração de riqueza, a concentração de infraestrutura portuária e aeroportuária, que estava reunida em Porto Príncipe, e distribuí-la por todo o território. Queremos criar novos polos de crescimento fora da capital, o potencial existe, falta explorá-lo. Também o que falta ao Haiti agora é a elaboração de um projeto de desenvolvimento, de uma visão de médio e longo prazo de desenvolvimento do país, que inclua a maioria da população, e não uma exclusiva, como acontecia antes do tremor. Desenvolvimento - Qual a importância do auxílio da comunidade internacional ao país, após o terremoto? Nicolas - Ganhamos bastante auxílio, mas também muitas promessas de ajuda da parte da comunidade internacional não foram oficializadas. Vinte por cento da ajuda prometida foi entregue, ou seja, oitenta por cento da ajuda não foi realizada. O que passa é que os haitianos têm responsabilidades com seu país, não é somente a solidariedade internacional que vai fazer avançar a reconstrução do Haiti. Eu penso também que quanto mais fizermos nosso dever de reconstrução, mais teremos legitimidade para solicitar à comunidade internacional que respeite os acordos assumidos.
Desenvolvimento - Líderes locais reclamam que após o terremoto e a comoção inicial a comunidade internacional parou de se interessar pelo país, diminuindo a ajuda e permitindo que a problemas tradicionais de situações pós-catastrofes, como a cólera, matassem milhares de haitianos. O senhor concorda com esta avaliação? Nicolas - Há uma grande expressão de solidariedade em relação ao Haiti. É normal o que aconteceu com o Haiti e com todos os países que passaram por catástrofes, há um ciclo, em um primeiro momento há muito interesse e auxílio internacional, e depois isso vai arrefecendo. O que devemos fazer é mostrar também à comunidade internacional que o terremoto abre oportunidades para investimentos externos. Um ano após o tremor acho importante mostrarmos que há possibilidade de investir no social, na infraestrutura. Devemos chamar o capital internacional para participar da reconstrução do Haiti e na região. Desenvolvimento - A estimativa é que o PIB do Haiti tenha se contraído 8% em 2010. Ou seja, o cenário econômico do país, que já era crítico, se agravou por conta do trágico terremoto. Qual plano de recuperação o senhor poderia sugerir? Nicolas - As previsões eram de impacto de 8%, mas após correções, verificou-se que houve uma queda de 5% no PIB. O ministério das finanças também prevê um crescimento de aproximadamente 100% da economia, mas isso acontece porque houve uma destruição muito grande, então é claro que o crescimento se torna positivo rapidamente. Há um plano de recuperação feito pelo governo em março do ano passado com políticas públicas a serem aplicadas nos próximos 18 meses, e que foi apresentado à comunidade internacional, que visa a refundação econômica do país, ou seja, a construção de polos econômicos, o estímulo ao investimento externo. Há iniciativas para investir no setor têxtil haitiano, por exemplo, para que as exportações deste setor tenham vantagens no mercado norteamericano, há projetos para a construção de locais para receber empresas, há também iniciativas para relançar o turismo para regiões precisas do país, como a Norte [menos afetada pelo terremoto]. Há também um projeto para construir zonas de investimento na fronteira com a República Dominicana, no Norte, que vai beneficiar o intercâmbio comercial com este país. Temos um projeto de uma refundação institucional, que toma face na reorganização do território, para desconcentrar os investimentos, a infraestrutura portuária, aeroportuária e de comunicação. Estes são os planos para estímulo ao crescimento. Há também um projeto de refundação social, que envolve as organizações sociais, de desenvolver programas de microcrédito, mais inclusivos, de maneira a relançar a produção nacional, além de iniciativas para dinamizar a agricultura haitiana, modernizando-a. Estes planos foram discutidos com a comunidade internacional. Há ainda uma usina sino-coreana que vai se instalar no Haiti, conferindo trabalho a 20 mil haitianos no setor têxtil, dentre outros projetos, mas eles não são suficientes. O plano foi estabelecido para dezoito meses, mas deve passar por uma revisão. Desenvolvimento - Mais da metade das exportações do Haiti tem por destino os Estados Unidos. O que fazer para reduzir esta dependência? É possível superá-la? Nicolas - O que acontece é que os laços entre o Haiti e os Estados Unidos são muito fortes, mas estamos buscando a diversificação. Como falei, há esforços para a construção de uma usina sinocoreana, os espanhóis tem projetos no setor turístico, a França fará investimentos no Haiti, o Brasil também tem planos no setor têxtil, falam de recursos do México. Estes investimentos buscam a diversificação da economia a partir da diversificação de parceiros, e deste modo desconcentrando as exportações do Haiti, e dinamizando-as. Desenvolvimento - Mais de dois terços da força de trabalho no Haiti não têm emprego formal, e cerca de 65% da força de trabalho está na agricultura. Como promover uma qualificação profissional que prepare o Haiti para um futuro mais promissor? Nicolas - Falando da agricultura, até os anos de 1980 o Haiti tinha autonomia alimentar. Neste período começaram as políticas liberais, primeiro com as importações de carros, e depois autorizando importações que afetaram toda a economia do país, diminuindo sua capacidade agrícola do país. Fora deste cenário o Haiti tem a possibilidade de reconquistar esta autonomia alimentar, desenvolver e modernizar sua agricultura. Temos também que interessar aos jovens sobre esta questão, para tentar reverter este problema que faz com que hoje cerca de 80% dos ganhos obtidos com exportações sejam destinados a importar produtos alimentares. A solução passa pela modernização do setor, também do sistema financeiro, que dá o crédito agrícola, que no país não alcança os 2% do crédito bancário. Essa seria uma primeira possibilidade de mudar este cenário. Uma segunda possibilidade é diminuir o mercado informal de trabalho por meio dos investimentos formais. Os investimentos que estão sendo feitos no setor produtivo no Haiti vão levar a uma nova proporção entre trabalho formal e informal, reduzindo os fortes índices de desemprego observados nas principais cidades do país. Penso que uma política voltada para renovação e promoção do setor agrícola e a criação de um mercado cativo de demanda para produtos agrícolas haitianos, será o mesmo que redinamizar toda a economia, e reduzir a dependência de importação de produtos alimentares. Desenvolvimento - Uma coisa é o país ter sustentabilidade econômica, outra coisa é ter sustentabilidade política. Qualquer que seja o vencedor das eleições presidenciais [cujo resultado final é esperado para meados de abril], ele terá estabilidade política? Nicolas - Está claro que estas eleições se tornaram um fator de estabilidade política, para que haja investimentos externos e internos, para tanto é necessário afastar uma imagem negativa destas eleições. Temos que passar a imagem de que as eleições foram bem realizadas, e que o governo que emergirá das urnas seja um governo legítimo. Desenvolvimento - E quanto ao partido opositor Lavalas, dissolvido nesse processo eleitoral? Podem seus simpatizantes tentar desestabilizar o novo governo? Nicolas - O partido Lavalas é o mais importante do país, e foi excluído das eleições, e não houve reação violenta de seus partidários. Não creio que o partido vá reagir violentamente contra as eleições. Suponho que ele vá continuar a declarar que é o maior partido do país, e a dizer que o sistema político deve respeitar seu direito de participar das eleições, questionando a decisão de excluir um partido tão importante. Pode ser que uma das explicações sobre a instabilidade que há hoje é que um partido tão importante não seja parte do processo eleitoral, isso deixa dúvidas sobre a credibilidade, e legitimidade, gerando instabilidade nas eleições. Penso que a estabilidade política do país passa pelo respeito do voto popular, e a legitimidade política não pode ser assegurada se o povo não se reconhece no governo eleito. É possível que haja instabilidade, não posso falar pelo partido, mas suponho que se há um governo que aplique políticas que respondam às necessidades de mais de um homem, o governo possa ganhar esta legitimidade mesmo sem Lavalas. Desenvolvimento - O retorno de Jean Claude Duvalier, (acusado de corrupção e desvio de dinheiro entre 1971 e 1986, e auxiliado na sua política de controle do país por forças paramilitares) não significa um segundo terremoto na vida política e social do Haiti? Nicolas - É claro que não esperávamos sua volta, especialmente neste momento crítico do processo eleitoral, isso surpreendeu a todos. Sua presença gerou certa reação de rejeição nas pessoas, pois Duvalier não foi tenro com seus adversários quando no poder, então sua presença no país enerva um pouco a maioria da população. Parte das pessoas vê o retorno de um chefe de partido após 25 anos, que contribuiu para o desenvolvimento de seu país, e outra parte não esta pronta para esquecer seu regime, e isso complica as coisas. Ao mesmo tempo temos que dizer que 25 anos depois vivemos uma nova geração, um outro Haiti hoje. Penso que o país avançou, há um processo democrático em curso, que tem suas falhas, mas é bastante forte, há liberdade de expressão, ou seja é um outro país, e há bastante gente que não está disposta a abrir mão destas conquistas, penso que a sociedade não está disposta a aceitar seu retorno.
Desenvolvimento - Como desenvolver a democracia em um país no qual a maior parte dos presidentes deixou o poder assassinado ou deposto? |