2011 . Ano 8 . Edição 70 - 29/02/2012
Fernanda Felisberto
|
Quando refletimos sobre mulheres negras e espaço literário no Brasil, o que emerge são os objetos de análise: Bertoleza, Tia Anastácia, Rita Baiana, as várias mulheres de Jorge Amado, entre outras, todas tratadas como objetos, nenhuma como sujeito. Quando insistimos em querer provar que existem, sim, outras vozes do outro lado do papel, na condição de escritoras e não de personagens, encontramos, com boa vontade, Carolina Maria de Jesus, muito mais pela ousadia do conteúdo e sua precária condição social do que propriamente pelo reconhecimento da insurgência de uma autora. Mais timidamente temos ainda Maria Firmina dos Reis e, atualmente, Ana Maria Gonçalves e seu romance Um defeito de cor, muitas vezes descolado, solto da figura da escritora negra. Paradoxalmente temos Conceição Evaristo, uma unanimidade entre as(os) pesquisadoras(es) da área de relações raciais, mas ainda edificando seu lugar dentro dos espaços de tradições intelectuais brasileiras. Esta presença opaca, tímida das escritoras negras, não é diferente dos impasses enfrentados nos outros âmbitos da vida pública e privada.
Na sociedade em que vivemos, temos que lidar com a pouca valorização do trabalho intelectual. Quando este, ainda por cima, está focado em torno de pesquisadoras negras e suas temáticas, o problema se torna ainda mais complexo, já que dentro da população negra ainda está em curso a batalha pela alfabetização, visando não somente à formação do indivíduo, mas obter melhores condições de trabalho e, consequentemente, de vida. Sendo assim, optar por se tornar pesquisador(a) ou escritor(a) ainda é algo distante da realidade da maioria da população negra.
Entendemos que a entrada gradativa de intelectuais negras(os) nos espaços acadêmicos brasileiros tem também como proposta contribuir para a entrada e a (re)configuração de alguns marcos teóricos dentro das universidades. Sabemos que este processo não é automático, pois a travessia do lugar de objeto para o de sujeito produtor de conhecimento leva tempo. E a temporalidade, neste caso, está diretamente relacionada, também, ao domínio dos códigos, ao assenhorear de sua fala e se empoderar de seus espaços, já que o que se tem como referencial são os clássicos eurocêntricos sendo cartesianamente (re)lidos, (re)inventados, (re) interpretados, na vã tentativa de se buscar uma universalidade em situações tão particulares.
Muitas mulheres negras constroem seus percursos intelectuais partindo do ativismo nos distintos movimentos feministas, que, apesar de alguns entraves políticos, vem elaborando sua compreensão sobre o papel das mulheres negras no seu interior e vem enegrecendo o feminismo, como teorizou a feminista negra Sueli Carneiro.
Estas intelectuais que saem do movimento de mulheres negras trazem em suas bagagens um fortalecimento de autoestima, empoderamento e conseguem vencer a barreira de chegar à academia, na maioria das vezes em uma faixa etária diferente, bem acima da atual clientela universitária, que sai diretamente do ensino médio para as faculdades.
Este ponto é interessante, pois o que se observa é um desconforto para ambos os lados. Fica evidente pelos levantamentos apontados que a presença de mulheres negras dentro da academia acaba construindo um sentimento de estrangeirismo nesses espaços por parte destas mulheres, pois o(a) professor(a), também, não está acostumado a lidar com as particularidades deste grupo. A necessidade de trabalhar faz com que a participação dessas mulheres em muitas atividades acadêmicas, como seminários e congressos, fique comprometida, o que acaba gerando uma falta de aproximação com colegas e professores. Como resultado, temos que essas mulheres, em muitos casos, passam por uma instituição, mas não criam vínculos com ela.
Tomando de empréstimo as palavras de Sueli Carneiro, vemos que a academia brasileira ainda está sedimentando seu processo de enegrecimento, o que gera ainda dificuldades em constituir interlocutores(as) nas mais diferentes esferas. O resultado, na maioria dos casos, é a solidão. Forçar adaptações, negociações, esbarra invariavelmente em (re) condicionamento ideológico, o que implica muitas vezes subtrações e até mutilações simbólicas. E, bebendo da literatura um pouco mais para ilustrar, temos o poema de Cuti, “Saci”:
O saci tinha duas pernas Uma dava passo africano Com os anos A cultura Fez a ruptura
Por isso a literatura produzida por mulheres negras no País é uma ferramenta singular, de fortalecimento deste grupo, tanto em seu interior, como (re)significando a história das mulheres negras e da população negra para o resto do País.
___________________________________________________________________________________ Fernanda Felisberto é doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Este texto é parte da tese de doutorado da autora.
|