2014 . Ano 10 . Edição 79 - 23/05/2014
Leandro del Moral Rocío Bustamante
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A necessidade de “ajustar espacialmente” o âmbito de gestão dos recursos naturais ao seu marco físico-natural tem sido considerada condição imprescindível para sua adequada gestão. Contudo, ultimamente, ainda que se reconheça a importância do “ajuste espacial”, criticam-se algumas simplificações com os seguintes argumentos: a) as fronteiras territoriais de um recurso, inclusive os “naturais”, não são fáceis de estabelecer; b) a delimitação do âmbito de gestão com relação a um critério resolve alguns problemas, mas pode criar outros; c) a elevação da escala da gestão para âmbitos espaciais maiores aumenta o número de atores e interações e gera altos custos de transação; d) a delimitação em termos exclusivos de fronteiras naturais de um recurso ignora ou subestima as múltiplas geografias e políticas socioeconômicas e culturais dos sistemas socioecológicos.
Sob estes argumentos subjazem as seguintes ideias: a) a governança ambiental é uma realidade politizada, a gestão não é neutra, a “escala é política”; b) os processos de reescalonamento são resultados de fenômenos sociopolíticos, mais que de decisões pragmáticas politicamente neutras predeterminadas pela natureza, por realidades físico-naturais inquestionáveis; c) as variações de escala geram mudanças na identificação, no tipo e na posição dos atores, modificando as relações de poder, as “geometrias de poder”.
À primeira vista, a bacia hidrográfica se destaca pelo caráter claro dos fatores fisiográficos: topografia, bacias vertentes, unidade de drenagem. Contudo, uma forte corrente dentro da literatura sobre o tema vem explicitando os limites de considerar a bacia como unidade de administração, e, mais ainda, se passamos da gestão à governança. Os motivos da crítica e os argumentos são distintos, porém existe um conjunto de ideias comuns, entre as quais: a) a heterogeneidade, complexidade e dinamismo dos fenômenos hidrológicos em que se apoia a definição de bacia hidrográfica; b) a diversidade e falta de natureza comum de sua concretização: microbacias, macrobacias, sub-bacias, configurações administrativas de bacias que dão lugar a uma ambiguidade de limites; c) as bacias como unidades de gestão da água são fruto de processos históricos de definição e redefinição social; d) as bacias são modificadas fisicamente de maneira direta e crescente pelas intervenções hidráulicas (transvases e dessalinização); e) institucionalmente são modificadas de forma indireta pela interconexão das bacias com escalas superiores de decisão (ex: políticas comerciais que introduzem a importante realidade da “água virtual”).
Como pano de fundo do debate, surge o conceito de “território hidrossocial”, que enfatiza a ideia da coprodução da água, da “natureza híbrida” da água, oposta à concepção da água como mero recurso material, objeto exterior das ações humanas. Neste sentido, vai de encontro a uma larga tradição de pensamento geográfico: o território não é o contexto no qual a água está contida, mas uma entidade socionaturalmente produzida. O conceito de território hidrossocial conecta-se com o de “paisagens da água” (waterscapes), entidades espaciais configuradas por fluxos de água, tecnologias, instituições, discursos e significados que produzem e são produzidas por relações de poder. Os territórios hidrossociais (as paisagens da água) se formam por processos socioecológicos desenvolvidos em diversas escalas temporais e espaciais, que não podem confinar-se na realidade fisiográfica da bacia hidrográfica.
Ao tratar do “ajuste espacial”, deve-se prestar atenção a mudanças de relações e estruturas de poder. As bacias devem ser concebidas como ferramentas a serviço de certos objetivos políticos, mais do que como condições obrigatórias para a governabilidade da água. Não há escala natural hidrológica e tecnicamente inquestionável. É necessário perguntar: Quando são as bacias apropriadas ou úteis? Que tipo de decisões se podem adotar na escala de bacia? Que tradições, práticas e direitos locais podem ser ameaçados em cada caso?
___________________________________________________________________________________ Leandro del Moral é diretor do Departamento de Geografia Humana da Universidade de Sevilha (Espanha) e membro do Conselho Curador da Fundação Nova Cultura da Água. Rocío Bustamante é professora do Centro Andino para a Gestão e Uso da Água, Universidade Maior de San Simón, Cochabamba (Bolívia). Pertencem à Área Temática 6, Bacias e Territórios da Rede WATERLAT (www.waterlat.org). Traduzido do original em espanhol por Albino Alvarez e Maria da Piedade Morais, TPPs do Ipea.
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