2014 . Ano 10 . Edição 79 - 23/05/2014
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Ao desembarcarem no país, os médicos estrangeiros trouxeram na bagagem uma boa dose de esperança para os brasileiros que se queixam da falta de profissionais na área de saúde |
Estudos do Ipea revelam que a prioridade número um dos brasileiros é a melhoria do sistema de saúde. Instituto vê o Mais Médicos como um mecanismo de ajuste das distorções do SUS e faz uma série de propostas para atender à demanda da população
Carla Lisboa
Em junho de 2013 o Brasil foi palco de uma das maiores manifestações de rua de sua história moderna. Em resposta à insatisfação da população, expressa nas jornadas de julho de 2013, o governo federal adotou uma série de medidas para diferentes políticas públicas, com destaque para a saúde, que se revelou a principal preocupação dos brasileiros.
Por isso, em 8 de julho de 2013, a presidenta da República, Dilma Rousseff, lançou o Programa Mais Médicos como um pacto para tirar o sistema de saúde da UTI. O ex-ministro da Saúde e criador do programa, Alexandre Padilha, avaliou a proposta como um compromisso pela melhoria do Sistema Único de Saúde (SUS). “É apenas o início de profunda mudança na saúde e, como parte de uma ação estruturante, tem uma ação voltada para melhorar a infraestrutura do sistema e qualificar a formação médica”.
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Pesquisa feita em 2013 pelo Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), do Ipea, replicou questões da pesquisa My World (http://www. myworld2015.org/), da ONU, que pede para os indivíduos selecionarem seis entre 16 possíveis prioridades que fariam a maior diferença para as suas vidas e de suas famílias. Os resultados revelam que 85,5% dos entrevistados indicaram a melhoria na saúde dentre as seis prioridades escolhidas, tornando este o tema o mais importante para os brasileiros. Esse estudo conquistou, em dezembro, o Prêmio My World, da Organização das Nações Unidas (ONU).
Os dados dessa pesquisa vão subsidiar a revisão da agenda global dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio após 2015. “O Ipea e diferentes institutos confirmam essa iniciativa como a mais relevante no momento. O Mais Médicos pode ajudar a ajustar distorções do SUS e corrigir precariedades do mercado de medicina”, diz o presidente do instituto, Marcelo Neri.
Em outros países, segundo a pesquisa My World, a prioridade é a educação. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2009, sobre a qualidade dos serviços, confirma a saúde como primordial e revela que ela é avaliada como pior do que a educação. Pelos dados do SIPS, 43,5% da população acham a saúde ruim. Esse estudo demonstra um grande diferencial entre a percepção da qualidade de saúde da classe E (39,58%) e a da classe AB (56,39%).
Dados do Censo mostram a evolução da formação e dos fluxos de médicos e enfermeiros nos últimos 10 anos no país. Entre 2000 e 2010, o número de médicos que se formaram aumentou em 62%. O de enfermeiros, 575%. “O Mais Médicos talvez seja necessário para usar os novos profissionais em enfermagem. Os médicos não aumentaram na mesma proporção”, avalia o estudo percepção da população sobre os itens mais importantes para os entrevistados e suas famílias, coordenado por Neri.
POLÍTICAS DE SAÚDE COMPROVAM A ESCASSEZ DE MÉDICOS
A escassez de médicos percebida pela sociedade brasileira é ainda mais acentuada nas cidades do interior do país e nas periferias das grandes metrópoles que não conseguem atrair e fixar médicos no SUS. Matheus Stivali, técnico da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) e coordenador da área de saúde, diz que o Programa Mais Médicos “altera a relação federativa no SUS, pois parte da execução da política de saúde que era reservada aos municípios passa a ser assumida pela União”. Assim, o programa foi criado para auxiliar os municípios com maiores dificuldades para contratar médicos para atuar na atenção básica.
Há dois critérios para avaliar a escassez: o econômico, com olhar sobre salário, ocupação, e o de política pública. Nesse último, quem planeja a política de saúde define uma taxa de médicos por habitantes e a persegue. Os sistemas de saúde universais e de financiamento público, como os do Canadá ou do Reino Unido, têm como porta de acesso a atenção básica, que é onde o Mais Médicos vai atuar.
Outro ponto apontado pela coordenação de saúde é que o país tem um arranjo federativo particular em que o financiamento da política de saúde é compartilhado pelas três esferas de governo, mas sua execução é concentrada nos municípios. O SUS envolve mais de cinco mil municípios com diferentes capacidades de gestão do sistema de saúde e de contratação de profissionais. Essa heterogeneidade explica em grande parte as dificuldades de contratação e fixação de profissionais para atuar no SUS.
A escassez de oferta é medida pelo número de médicos por habitante. Segundo o Repositório de Dados do Observatório Global de Saúde da OMS, em 2008 o sistema universal do Reino Unido, reconhecido por sua boa cobertura, possuía uma média de 2,76 médicos por mil habitantes, enquanto a média brasileira era de 1,76, maior apenas do que a chilena (1,03).
É sobre essa escassez que o Programa Mais Médicos atuará no curto prazo, pela contratação de médicos brasileiros e estrangeiros para atuar em áreas de menor oferta. No longo prazo, pelo aumento de vagas de graduação e de residência médica, priorizando especialidades da atenção básica e com maior escassez no país, como a pediatria.
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A implantação do Programa Mais Médicos gerou polêmica, sobretudo em relação aos médicos cubanos. Entidades de classe questionaram o contrato com Cuba na Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Organização Mundial da Saúde (OMS) e na própria Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que intermedia o contrato. Diferentemente dos demais integrantes do programa, que recebem salários de R$ 10 mil, os 7,4 mil médicos cubanos receberam, até fevereiro deste ano, US$ 1.000. Desse total, US$ 400 eram pagos no Brasil e US$ 600 depositados numa conta em Cuba. A remuneração deles aumentou 25%.
O ministro da Saúde, Arthur Chioro, anunciou o reajuste como uma das soluções para diminuir distorções de remuneração e iniciar uma revisão no programa. A partir de março, os cubanos passaram a receber, no Brasil, US$ 1.245. Com essa revisão, o Brasil vai repassar à Opas R$ 973,9 milhões para a contratação dos médicos cubanos, quantia 90% maior do que o primeiro termo de ajuste – R$ 511 milhões.
A Associação Médica Brasileira (AMB) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU) ingressaram com duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 5035 e 5037) no Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir a concessão de registro. Querem que os imigrantes façam o Revalida, Sistema de Revalidação de Diplomas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e recebam remunerações condizentes com as praticadas no país.
SOLUÇÕES QUE PODEM AJUDAR A TIRAR O SUS DA UTI
Estudos preliminares da coordenação de saúde do Ipea identificaram um conjunto de possíveis respostas para boa parte dos problemas estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS).
ENFERMEIRO Uma delas seria o fortalecimento do papel do enfermeiro na atenção básica e dos agentes de saúde comunitários, assistentes sociais e outros profissionais, com inovações na gestão do SUS. Com isso, as demandas da população poderiam ser atendidas com mais presteza e a oferta de atendimento seria ampliada.
EMERGÊNCIAS Outro ponto interessante para a reestruturação do sistema seria melhorar o acesso e a atenção integral à saúde, com ampliação da rede de atenção às urgências, conclusão dos diagnósticos, avaliação das ações implantadas e criação de outras inovações dentro do Mais Médicos. As urgências são os serviços mais complicados em razão da desorganização do SUS e a solução para melhorar essa porta de entrada do sistema passa por um choque de oferta de profissionais a fim de melhorar o atendimento. Melhorar esse serviço ajudaria a organizar melhor a atenção à saúde como um todo e a reestruturar o sistema.
MAIS MÉDICOS O fortalecimento das urgências se afina com a proposta do Mais Médicos de contratar 13 mil profissionais e criar 11.447 novas vagas em cursos de medicina, com foco na melhor distribuição da oferta no país e nas regiões onde há necessidade de ampliar a formação desses profissionais, além da ampliação dos cursos de residência, com a oferta de 12.372 novas vagas.
O propósito do Mais Médicos, dentro dessa vertente da formação profissional, é o de ter uma vaga de residência para cada formando em medicina. Essa nova oferta estará direcionada às especialidades que o SUS oferece, como pediatria, medicina da família e comunidade, psiquiatria, neurologia, radiologia e neurocirurgia.
MÉDICOS POR HABITANTES No Brasil há uma explosão da oferta de trabalho na área médica em razão do crescimento da saúde suplementar e da oferta de serviços no SUS. Até 2015 serão criados mais 35 mil postos de trabalho para médicos somente em Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e Unidades Básicas de Saúde (UBS). Há uma média de 1,8 médico por mil habitantes, proporção inferior à encontrada em países da América Latina, como Argentina (3,2) e Uruguai (3,7).
O governo federal quer atingir a referência mundial nessa área, ou seja, a proporção do Reino Unido (2,7 médicos por mil habitantes), país que, depois do Brasil, tem o maior sistema de saúde público de caráter universal orientado pela atenção básica. Para atingir essa meta, seriam necessários mais 168.424 médicos, os quais se somariam aos 360 mil que já atuam no país. Existem 22 estados brasileiros com média menor do que a nacional, como, por exemplo, o Maranhão, que tem 0,5 médico por mil habitantes.
NÚMERO DE LEITOS Atualmente existem 505.045 leitos, sendo 349.790 do SUS. Houve uma ampliação de 63,4% no número de leitos de UTI no país entre 2007 e 2013, passando de 11.567 para 18.868. Os leitos de UTI são os de maior complexidade, exigem estrutura e esforço de profissionais, além de serem destinados a pacientes graves. Em 2007, os leitos de UTI vinculados ao SUS representavam 45% do total do país. Hoje, representam 50%. São realizados 11,5 milhões de internações e 3,2 bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano.
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O Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que tem proposta de interiorização. “Defendemos a criação de uma carreira para a atenção básica, a qual foi engavetada pelo ex-ministro Alexandre Padilha”, diz a assessoria de imprensa do conselho. Acrescenta que tem lutado pelo aumento de verbas para o SUS e foi responsável pela maior parte das assinaturas para o projeto de lei que visa instituir 10% do PIB para a saúde.
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DEMANDA A percepção da sociedade, expressa na pesquisa do SIPS de 2011, é a de que, do lado da demanda, a falta de médico é o principal gargalo do SUS. Os resultados de pesquisa do Ipea sobre saúde mostram que 58,1% das respostas indicaram esse como o maior problema. O segundo (35,4% das opiniões) foi a demora no atendimento em postos hospitalares. E o terceiro (33,8%), a demora para conseguir consulta com especialista. O estudo revela ainda que 47% acham necessário aumentar o número de médicos, 15,5% disseram que é preciso reduzir o tempo de espera entre a marcação e a consulta e 11,9% querem melhor atendimento.
Durante audiência pública no STF sobre o Programa Mais Médicos, o presidente do Ipea afirmou que “74% da população é favorável à vinda de imigrantes qualificados e 84% conviveria com eles”.
OFERTA Do ponto de vista da oferta – a relação médicos por população em idade ativa –, a maior presença de profissionais médicos está concentrada nas Regiões Sul e Sudeste. As unidades da Federação com melhores indicadores são: Distrito Federal (375,5 médicos por 100 mil habitantes), Rio de Janeiro (349,7), São Paulo (262,4), Rio Grande do Sul (239,3) e Espírito Santo (236,7). As cinco com os piores são Maranhão (67,4), Amapá (82,5), Pará (97,9), Rondônia (105,6) e Piauí (124,8).
Estudo realizado por Neri na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Escassez de Médicos, mostrou, a partir do Censo 2000, os médicos no topo dos profissionais economicamente mais escassos, além de vazios geográficos de atendimento em áreas pobres, contornadas por áreas litorâneas de maior poder aquisitivo com alta concentração de médicos.
Dados do Censo 2010 permitem visualizar duas abordagens em municípios com mais de 200 mil habitantes: a das pessoas com diploma de medicina superior completo (Graduados) e a de Ocupados da área de medicina. Na abordagem Graduados, os cinco municípios com mais médicos por habitante são Niterói, Vitória, Porto Alegre, Florianópolis e Santos, que contam com maior presença de internet e de carro por habitante. Ou seja, os médicos concentram-se nas áreas mais ricas.
No ranking da oferta e demanda dos dez mais dentre os 48 cursos, segundo o Censo Demográfico 2010, medicina aparece em primeiro lugar, com salário, na época, de R$ 6.940,12, com 25% a mais do que o segundo colocado. Apresenta também a maior taxa de ocupação e a quarta maior jornada de trabalho. No gráfico do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2006 sobre a escassez de médicos, o Brasil aparece acima somente da Índia e Nigéria.
Outro ponto em relação à oferta é que, entre 2000 e 2010, o número de médicos que se formaram aumentou em 62%. O de enfermeiros, 575%. “O Mais Médicos talvez seja necessário para usar os novos profissionais em enfermagem. Os médicos não aumentaram na mesma proporção”, avalia Neri.
INTERAÇÃO A interação entre uma oferta restrita de médicos e a demanda crescente por esses profissionais conduz a uma situação de escassez. A resposta do governo federal, o Programa Mais Médicos, em sua face mais visível e de curto prazo, que propõe elevar o número de profissionais do SUS e atender de forma imediata a áreas e cidades sem médicos, é aprovada, segundo pesquisa CNT/MDA de novembro de 2013, por 84,3% da população.
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