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Perfil - O brilhante de Apipucos

2015 . Ano 12 . Edição 84 - 16/10/2015

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Com dificuldades para ler e escrever quando criança, Gilberto Freyre se alfabetizou em inglês para, em bom português, tornar-se um dos mais relevantes cientistas sociais do Brasil

Caetano Manenti

É numa casa rosa, no bairro de Apipucos, onde a cidade do Recife quase encontra a de Camaragibe, que jaz a memória de Gilberto Freyre – justamente no imóvel em que morou, nas últimas quatro décadas de sua vida. É sua filha, a simpática dona Sônia Freyre, nascida e criada naquele mesmo terreno, hoje presidente da Fundação Gilberto Freyre, quem luta para preservar, com carinho, o legado do homem que mudou a história da ciência social brasileira.

Coincidentemente, foi às vésperas do Dia dos Pais que a reportagem da Desafios do Desenvolvimento conversou com Sônia. Emocionada nessa época especial, sincera aos 73 anos, ela demonstrou uma terna saudade de seu pai, falecido em 1987.

Rogério Maranhão/Acervo Fundação Gilberto Freyre
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Sônia Freyre, presidente da Fundação Gilberto Freyre

“ Quando a gente adoecia, ele ficava de plantão ao pé da cama. Quando éramos pequenos, fazia casinhas de brinquedo com caixa de sapato e brincava com as bonecas. Fazia muitos desenhos para a gente colorir. Quando vejo agora essas manias de livros para colorir, eu digo: ‘colori muito livro de papai’. Ele fazia enfeite de aniversário. A gente pintava e as festas ficavam lindas”.

Sônia é do tempo em que as filhas chamavam os pais de senhor. “Eu nunca chamei, era ‘você’, mesmo com tanta diferença de idade”, diz Sônia, que nasceu quando Gilberto Freyre tinha 42 anos. “Ele tinha uma teoria: ‘pulando uma geração você tem mais abertura para conversar e falar com seus filhos’. Ele era um pai-avô e, como avô, dava todas as bondades do mundo”.

Mais do que aproveitar apenas o calor de um pai presente e o orgulho de um homem de tantas honrarias, hoje, Sônia, mesmo que humildemente, se gaba de ter sido uma das meninas mais paparicadas da literatura brasileira.

“Bom era a convivência com os maiores nomes da cultura brasileira como se fossem meus tios. Eu tenho poesia de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade dedicadas a mim. É uma coisa que pouca gente tem. Eu achava tão normalzinho. José Lins do Rêgo e Rachel de Queiroz: eram todos íntimos meus. Tio Zé Lins me levava para ver jogo do Flamengo. Papai era Vasco e Zé era do Flamengo. Se quem me levava ao estádio era tio Zé Lins, por que eu seria Vasco?”

Nem o time carioca – do tempo em que foi deputado no Rio –, nem mesmo o time da terra natal de Gilberto Freyre, o Sport Clube do Recife, ficou de herança para a filha, torcedora do Naútico Capibaribe. “Isso que era bom. Era possível discordar dentro de casa”. É com essa ajuda valiosa de dona Sônia e outros biógrafos e cientistas que remontamos aqui alguns pontos fundamentais para se entender a vida e a obra de Gilberto Freyre.

Para começar, a filha de Freyre confirma a curiosa história de que o então futuro escritor (título que ele mesmo preferia em detrimento a antropólogo/sociólogo/cientista social) tivera severas dificuldades de aprendizagem na escola – até mesmo de ler e escrever –, embora, desde cedo, se mostrasse muito bom em desenhos e pinturas. Nascido em março de 1900, Freyre já tinha nove anos quando perdeu a avó materna, que vivia a mimá-lo por acreditar que seu neto tivesse algum tipo de retardo. Pobre da senhora que morreu sem saber que tinha diante de si um dos mais fundamentais escritores do país. Precisou que um professor de inglês insistisse em sua alfabetização para Gilberto – por incrível que pareça, em inglês –, finalmente, destravar sua aprendizagem. Foi o primeiro capítulo de uma longa e profunda relação com a anglofonia.

Tuca Siqueira/Acervo da Fundação Gilberto Freyre
 Rogério Maranhão/Acervo Fundação Gilberto Freyre
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Sede da Fundação Gilberto Freyre, no bairro de Apipucos, no estado
de Pernambuco

Gilberto era filho de Alfredo Freyre, um conhecido professor universitário e humanista pernambucano. A confortável situação financeira da família permitiu ao menino um intenso contato com os engenhos de açúcar de parentes seus e – talvez ainda mais importante para os próximos capítulos dessa história – possibilitou ainda ao (agora) entusiasmado jovem de 18 anos uma longa viagem ao estrangeiro para aprofundar seus estudos. Primeiro, ele foi aos Estados Unidos, onde teve, após uma passagem pelo Texas, um intenso contato com a história e a antropologia, como estudante da prestigiada Universidade de Colúmbia, em Nova York. Passou cinco anos viajando e estudando entre os Estados Unidose a Europa.

Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, autora de Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos entre muitos outros trabalhos, é uma dos tantos cientistas que analisaram a obra e a vida de Freyre. Ela revela que são justamente daquele período em que ele esteve no exterior algumas das mais polêmicas descobertas da vida do pernambucano. Em entrevista à Desafios, ela relata que Gilberto vivia descontente de ter nascido brasileiro. Certo dia, teria se perguntado: “Por que não nasci inglês, ou alemão, ou americano?”

Não seria essa, no entanto, a mais perturbadora questão do tempo de Freyre em terras norte-americanas. Segue Pallares-Burke: “Um dos desafios mais dramáticos que enfrentei nesse estudo foi como lidar com as desconcertantes evidências de que Freyre estivera profundamente entusiasmado com as ideias racistas que estavam sendo popularizadas nos Estados Unidos nos anos em que ali viveu; e de que por algum tempo ele nadou com a corrente, engrossando a fileira dos muitos que achavam que o racismo tinha fundamento científico e que a argumentação da eugenia sobre a pureza racial e sobre as benesses da segregação era totalmente satisfatória e suficiente para fundamentar drásticas e desumanas políticas governamentais. Omitir tais simpatias, que incluíram até uma não velada tolerância para com a Ku Klux Klan, seria cometer o pecado de desonestidade intelectual”.

Antes de separar as pedras para se jogar na memória de Freyre, é preciso ir além nessa história para, também sem desonestidade, entender que a estrada intelectual que o cientista percorreu, do delicado século XX até as suas mais brilhantes constatações, teve um papel importante em sua obra.

“Seu caminho até Casa-Grande & Senzala e a valorização da mestiçagem foi bastante conturbado e em ziguezague. Ele teve de conhecer e admirar o racismo em uma de suas formas mais extremadas para que, finalmente, e muito corajosamente, pudesse se livrar dele. Quando, finalmente, já na década de 1930, contrapondo-se à forte corrente internacional que alardeava os efeitos desastrosos da miscigenação, Freyre publicou Casa-Grande & Senzala, ele estava a unir forças com pessoas como os antropólogos Roquette-Pinto, Franz Boas e seu brilhante colega de Colúmbia, Rüdiger Bilden, que combatiam teses da hierarquia das raças e da degeneração da “raça” mestiça, argumentando que o problema a ser solucionado no Brasil e em outros países de população mestiça não era racial, mas, ao contrário, social e ambiental”, aponta, outra vez, Pallares-Burke.

Acervo Fundação Gilberto Freyre
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Gilberto Freyre, a mulher e os filhos em foto de família

A obra-prima de Gilberto Freyre, publicada em 1933, foi o primeiro livro do autor e teve um imenso impacto no Brasil da época – e ainda tem para quem o lê hoje pela primeira vez. Despindo-se da linguagem excessivamente coloquial de seus antecessores, elaborou um profundo estudo sociológico, utilizando uma extraordinária capacidade literária. Foi, para Jorge Amado, “uma revolução cultural”. Para muitos intelectuais, o livro foi o passo mais decisivo para as ciências sociais brasileiras se livrarem de uma pesada amarra positivista que carregava desde o século XIX. Foi o tratado que ratificou uma “consciência de nacionalidade”, como escreveu o filósofo Olavo de Carvalho no prefácio do livro para a versão romena, ou ainda uma “descolonização cultural” como aponta, em nossa entrevista, Pallares- Burke. O momento era propício. Getúlio Vargas usava a valorização da cultura brasileira, ao mesmo tempo, como bandeira e pano de fundo de sua ditadura.

Ao que parece, Freyre não tinha uma intenção política decisiva na elaboração de Casa-Grande & Senzala, tanto que, em breve, faria oposição a Getúlio por um partido liberal. O compromisso de Freyre era, preferencialmente, científico e literário: o de mostrar um Brasil que não era a continuação de uma história europeia. A cultura brasileira, afinal, fora forjada na mestiçagem.

O livro suscitou muitas polêmicas também. Sem dúvida, a mais famosa trata do que foi chamado de “democracia racial”, um debate espinhoso demais para se travar em poucas linhas. O mito da democracia racial é a ideia de que no Brasil haveria, ao contrário dos Estados Unidos, uma convivência pacífica entre negros e brancos e que todos teriam chances individuais iguais de sucesso. Embora Freyre não tivesse escrito nada diretamente com esse nome, foi por meio de sua obra que surgiu a ideia de que no Brasil não havia racismo. Pallares-Burke descreve, assim, a questão: “A posição de Freyre em favor de uma mistura cultural ou hibridismo é mais ou menos uma posição de meio-termo entre aquela dos ‘assimilacionistas’ – que querem que os imigrantes abdiquem de suas próprias culturas e se tornem americanos, britânicos, etc. – e, de outro, a dos ‘multiculturalistas’, que gostariam que cada grupo étnico mantivesse suas próprias tradições. Não se ouve hoje muitas pessoas argumentarem da mesma maneira aqui na Europa – apesar desse tipo de mistura ser, de fato, o que está acontecendo”. Quem detrata a “democracia racial”, normalmente, o faz por indicar que ela trata com benevolência as profundas feridas raciais brasileiras. Por outro lado, é certo que os escritos de Freyre – e sua própria ação individual – contribuíram deveras para os aprofundamentos da cultura afro-brasileira no país. Uma prova disso é que, logo em 1934, ele organizou no Recife o 1° Congresso de Estudos Afro-Brasileiros.

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Casa-Grande & Senzala, como a cronologia indica, foi o ponto de partida e não de chegada da intelectualidade de Freyre, embora tenha sido seu livro mais lido. Apenas três anos depois, em 1936, o escritor lançava uma nova obra-prima da sociologia brasileira. Sobrados e Mucambos tratou, sobremaneira, da vida na cidade, no período em que se inicia um volumoso êxodo rural no Brasil. Para Sônia, filha de Freyre, esse era o livro do coração de seu pai.

“O livro preferido dele era Sobrados e Mucambos. Ele dizia: Casa-Grande & Senzala foi impactante. Chamou a atenção e ainda hoje é o livro que vende. Mas Sobrados e Mucambos saiu mais da alma dele. É um livro espetacular. O livro de que eu mais gosto, porém, é Nordeste. Têm também poesias que ele fez para a minha mãe que são lindas, maravilhosas. Ele passou o que sabia para quem quisesse ouvir. Deu contribuição para livro de muita gente”.

Nas cinco décadas seguintes que viveu, ele produziu uma extensa e intensa obra, não apenas sobre o Brasil e não apenas em formato de livros. Escreveu em jornais e revistas sobre os mais variados temas. Casou em 1941 com Maria Magdalena Guedes Peres, estudante de educação física duas décadas mais nova. Teve dois filhos. Foi professor universitário, deputado federal, publicou e viajou muito para fora do país. Criou, no Recife, a Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Discursou na ONU. Recebeu selos e sambas-enredos em sua homenagem.

Tuca Siqueira. Acervo da FundaÁ„o Gilberto Freyre
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Biblioteca da Fundação GIlberto Freyre

Tantos capítulos de vida hoje dão trabalho à sua filha Sônia, que tenta organizar todo o material na fundação. “Ele era bagunceiro, mas guardava tudo. Até tíquete do avião para onde ia, ele guardava. Dá para recontar toda a vida dele. Escrevia em qualquer papel. Era só ter uma ideia que ele procurava um papel. Papel de pão. Você já viu escrever até em papel higiênico?”

A vasta obra de Freyre teve decisivo impacto nos cientistas sociais brasileiros do último século, como Roberto Da Matta. “Não se poderia imaginar a possibilidade de seus trabalhos sobre carnaval e sobre o papel da casa e da rua na sociedade brasileira sem a provocação e a inspiração freyreanas”, confirma Pallares-Burke, que prossegue: “Mas uma escola e discípulos propriamente ditos, Freyre não criou. Talvez sua decisão de não seguir uma carreira universitária e se manter um freelancer ao longo de sua vida em parte explique isso. Além disso, como salientou seu admirador inglês, Asa Briggs, não sendo “facilmente relacionado a uma escola ou mesmo a uma tradição historiográfica”, Freyre se impõe como uma figura brilhante, mas relativamente isolada”.

Tamanha biografia não permite uma abordagem superficial, nem da obra, nem da vida de Freyre. Complexo e profundo demais, vale o alerta para nunca cair na tentação de estereotipá-lo por suas circunstanciais adesões ou oposições. No entanto, é irresistível imaginar onde estaria Gilberto Freyre na rinha política que assola nosso país nesta segunda década do século XXI. A filha Sônia não revela com clareza, mas deixa sua impressão: “É de se imaginar que ele estaria muito... vou usar uma palavra bem pernambucana... “aperreado”, sabe? Não era isso que ele queria para o Brasil, não. Não sei se ele estaria conformado com o que está acontecendo. Ele não era de se conformar com o errado”.

Melhor do que imaginar é retornar aos clássicos e lê-los atentamente. Afinal, uma jornada às mais profundas e complexas problemáticas brasileiras tem passagem obrigatória por Apipucos, onde o Recife quase se encontra com Camaragibe.

 
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