O diferencial do trabalho de campo para pensar relações e questões sociais |
2015 . Ano 12 . Edição 85 - 20/01/2016
Bruna Penha Os dados quantitativos são muito eficazes para diagnosticar assimetrias sociais dentro de um território nacional e entre países, assim como auxiliam no planejamento, na formulação e na execução de políticas públicas para enfrentar essas disparidades que ferem grande parte das populações em questão e emperram os processos de desenvolvimento. No caso do Brasil e do Paraguai, esses dados apontam um maior avanço brasileiro na infraestrutura de transportes, energia e comunicações, além de uma capacidade maior de oferta de serviços públicos pelo Estado que aumentam a expectativa e a qualidade de vida dos cidadãos. Esses números, porém, não são suficientes para analisar a complexidade das consequências que essa desigualdade tem imposto historicamente aos moradores desses países. Em regiões de fronteira, as disparidades podem se refletir no convívio interpessoal transnacional de agentes populares, principalmente em fronteiras formadas por cidades gêmeas. Chamamos assim cidades nos limites nacionais, que são separadas por uma linha imaginária, geralmente uma rua, como a Avenida Internacional que separa Pedro Juan Caballero (Amambay, Paraguai) e Ponta Porã (Mato Grosso do Sul, Brasil), onde fiz, em 2012, uma pesquisa etnográfica com mulheres idosas paraguaias que moram no lado brasileiro da fronteira. As duas cidades têm seus centros comerciais ao redor da linha. Em Pedro Juan, as imagens dos letreiros da loja com os nomes Farmácia do Mercosul, Loja Xangai e Shopping Seiko sugerem a efervescência de imigrações no lugar, algo que não encontramos em Ponta Porã, onde as lojas são de brasileiros e não de chineses, coreanos, árabes e paraguaios. O que não contrasta muito entre os dois centros comerciais é o quadro de funcionários paraguaios, embora nas lojas do Brasil muitos atendentes são brasileiros e no Paraguai, não. À medida que nos afastamos dos centros, os cenários mudam gradativamente e as assimetrias entre os países compõem os cenários. Em Pedro Juan Caballero, afastar‑se docentro significa aproximar‑se do que muitas interlocutoras chamaram de “fundões do Paraguai”. A maneira alegórica como se referem aos paupérrimos bairros da periferia de Pedro Juan e à região rural de Amambay torna visível a divisão econômico‑social da cidade. As colônias agrícolas da região rural são formadas por pequenas chácaras, cuja produção abastece a Feira Libre do centro da cidade de mudas de plantas, ervas medicinais, milho, mandioca e queijo. Em Ponta Porã, os bairros são muito distintos uns dos outros e são habitados por pessoas de diferentes grupos econômicos. Ao nos aproximarmos das rodovias, entramos na área rural do município. Muitas imigrantes com quem conversei nesses bairros eram chefes de famílias monoparentais e matrifocais que, na juventude, trabalhavam como empregadas domésticas que moraram nas casas das patroas com seus filhos que, de certa forma, também trabalhavam nessas casas. Os relatos mostram relações ambíguas, de amizade e de exploração. Na fronteira, o trabalho doméstico remunerado e o não‑remunerado, e o trabalho agrícola, tanto para venda quanto para consumo próprio, apareceram como ocupações determinantes de, e determinadas por, questões socioculturais e de gênero. A migração, por sua vez, aparece quase como intrínseca às ocupações, na medida em que essas compensam mais quando pagas em uma moeda com valor maior. Durante o trabalho de campo, observei estratégias identitárias nas interações que pude analisar como uma tentativa de superar estigmas carregados pelos migrantes paraguaios e como uma maneira de ter acesso às políticas públicas. Enfim, foi possível perceber que é preciso trabalhar mais pela transversalização do direito à cidadania entre os países do Mercosul, considerando não apenas os indicadores estatísticos, mas também as nuances do convívio transnacional. A especificidade da Antropologia se encontra no estudo detalhado dos espaços intersticiais onde é possível observar as relações interpessoais, as interações e as comunicações cotidianas em que, muitas vezes, operam as instituições, associações e maquinarias legais. A região etnografada não é apenas um lugar de circulação de pessoas e de capital, mas é também um lugar de formação identitária, de interação e de prática social. O trabalho etnográfico traz, portanto, uma análise sensível de questões sociais complexas, que pode ser desenvolvida para auxiliar no planejamento de políticas mais efetivas. ___________________________________________________________________________________ Bruna Penha é bolsista do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) da Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais (Dinte) do Ipea. |