2004. Ano 1 . Edição 2 - 1/9/2004
"Desenvolver a gastronomia com ingredientes brasileiros é um desafio inédito para cozinheiros, químicos e físicos"
Carlos Alberto Dória
Há domínios da atividade humana onde se credita a criação apenas ao "gênio". A pintura, por exemplo, e, dentro dela, Picasso. Mas a ação do "gênio" sempre se apóia em relações sociais que favorecem a inovação.
Tome-se o caso da gastronomia, cuja meta é a busca do prazer através da alimentação e que sempre se conforma ao espírito da época com o seu gosto, o seu modo de comer e as técnicas propícias.
O seu boom no mundo moderno nos remete ao século XVIII, quando Antonin Carême (1783-1833), primeiro artífice da Grande Cozinha francesa, ofereceu à sociedade de cortes a refeição - esse objeto capaz de mobilizar a visão, o paladar, o olfato e o tato - como força centrípeta da grande diretriz da época, que era justamente... a busca do prazer. Dizia ele: "As belas-artes são cinco: a pintura, a poesia, a música, a escultura e a arquitetura, cujo ramo principal é a confeitaria". Esta frase mostra o aspecto visual da gastronomia exigindo técnicas construtivas adequadas, solucionadas com massas à base de açúcar e amêndoas.
Depois da arquitetura comestível de Carême, outro grande momento foi o de Auguste Escoffier (1846-1935), responsável pela cozinha das grandes redes de hotéis do final do século XIX. Seu trabalho correspondeu à introdução do fordismo na hotelaria e na restauração. Ele refundou a cozinha como uma série de procedimentos padronizados, codificados e repetitivos.
Já a nouvelle cuisine surgiu nos anos setenta do século XX em reação à degeneração do sistema de Escoffier e à monotonia que se desenvolveu à sua sombra. O movimento, liderado por Paul Bocuse, correspondia à assimilação parcial da ideologia naturalista (hippie) e a um certo japonismo visual, evidenciando um forte deslocamento de valores.
E o que surge para sucedê-la duas décadas depois? Tentou-se inicialmente a fusion cuisine, numa mistura mal resolvida de Oriente e Ocidente. Algo revolucionário, quando o laboratório ocupa o centro do processo de inovação. Dá a tônica a colaboração inédita entre físicos, químicos e cozinheiros, como no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA) na França, ou em restaurantes espanhóis, como o famoso El Bulli de Ferran Adrià.
O laboratório de "gastronomia molecular" do INRA se ocupa de investigações sobre os processos que precedem a gastronomia e são capazes de impactá-la, oferecendo o novo saber a uma rede de restaurantes e hotéis. Em El Bulli, o laboratório foi instalado dentro da própria cozinha: o restaurante funciona por apenas seis meses e, no restante do tempo, Adrià e seus colaboradores dedicam-se a pesquisas e invenções. Para quem contempla só o resultado (as "novidades") é grande a tentação de atribuí-las ao "gênio".
A partir da "laboratorização" da gastronomia, a "surpresa" se converte no próprio espetáculo. Isso exige que o chef trabalhe com grande domínio dos processos fisico-químicos, até então pouco usuais na cozinha, interrogando permanentemente as matérias-primas e processos. Precisa também interrogar a estabilidade técnica que marcou o século XX, quando os únicos acontecimentos de importância foram a eletrificação dos equipamentos e a invenção do forno a convecção.
Para as instituições brasileiras (faculdades de gastronomia, Senac), é fundamental compreender a nova dinâmica da inovação e evitar caminhos já trilhados. Além disso, o propósito de desenvolver a gastronomia com ingredientes brasileiros indica um desafio inédito para cozinheiros, químicos e físicos - se considerarmos o baixo nível de apropriação culinária da biodiversidade nativa quando miramos o prazer do comer.
Carlos Alberto Dória, sociólogo e consultor, é autor, entre outros, dos livros Ensaios Enveredados (Siciliano, 1991) e Os Federais da Cultura (Biruta, 2003).
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