2004. Ano 1 . Edição 3 - 1/10/2004
"Celso Furtado observou recentemente que o Brasil continua sendo uma constelação de regiões de distintos níveis de desenvolvimento, com uma grande heterogeneidade social e graves problemas sociais"
Constantino Cronemberger Mendes
Celso Furtado é, com Caio Prado Júnior e Ignácio Rangel, um dos patronos da economia política brasileira. É um dos primeiros autores a tratar de forma sistêmica o subdesenvolvimento brasileiro. Sua bibliografia contém cerca de trinta livros e mais de uma centena de artigos e ensaios. A sua importância, porém, deve ser considerada tanto do ponto de vista teórico quanto prático, dadas suas várias passagens por cargos no governo.
Furtado é um analista para quem as questões essenciais relativas ao desenvolvimento econômico só serão respondidas se forem superados os limites do tipo tradicional e limitado de análise econômica, cujo realismo é insatisfatório, e a menos que seja abolida a fronteira entre "fatores econômicos" e "fatores sociais". Sua construção teórica pode ser avaliada em três etapas: a partir dos anos 40, com um tratamento histórico-econômico; nos anos 50-70, quando incorpora aspectos sócio-políticos; e nos anos 80, quando insere a questão cultural. Trata-se de uma abordagem não usual pela insistência em adotar elementos multidisciplinares e delimitações analíticas em termos de espaço e tempo. Sua motivação é política, aliada ao tratamento teórico do subdesenvolvimento.
Ele utiliza um método analítico próprio, denominado "histórico-estrutural", a partir de várias influências. Suas principais contribuições à abordagem estruturalista são: a inclusão da dimensão histórica à abordagem "estrutural-cepalina"; as relações entre crescimento e distribuição de renda e a ênfase no sistema cultural. Pode-se considerar, ainda, a importância dada à questão regional e ao mercado interno para um projeto nacional-integrado de desenvolvimento. Assim, incorpora uma visão "histórico-regional-estruturalista" do subdesenvolvimento brasileiro, respaldada no termo "mudança estrutural" adotado por Perroux1.
Outras características da sua abordagem consideram a necessidade da intervenção planejadora do Estado. Celso Furtado observa o subdesenvolvimento não como um estágio (à la Rostow) que todas as sociedades têm de percorrer, e percebe uma reprodução no plano interno da assimetria entre centro industrializado e periferia subdesenvolvida.
As suas análises tratam da redistribuição de renda, da relação entre concentração de renda e crescimento econômico; da reforma agrária e da desigualdade regional. Segundo ele, a persistência de formas anacrônicas de distribuição da renda se traduz em insuficiente vigor na demanda para consumo ou investimento. Os aumentos da produtividade e da renda reproduzem padrões de consumo dos países mais ricos em grupos cada vez mais restritos, aumentando a desigualdade interna. Nesse contexto, Furtado observou recentemente que o Brasil continua sendo "uma constelação de regiões de distintos níveis de desenvolvimento, com uma grande heterogeneidade social e graves problemas sociais" 2.
Olhando em retrospectiva, os trabalhos produzidos até início da década de 70 provocaram maior impacto no pensamento social e econômico brasileiro e constituem o eixo da sua abordagem singular. Ao longo do tempo seus argumentos receberam adaptações, em função das transformações na realidade. Contudo, suas teses iniciais são mantidas intactas: a maior dificuldade do Brasil continua sendo reverter o processo de concentração de renda, cujas feições regionais são patentes, e colocar o mercado interno como centro dinâmico do crescimento nacional, o que não exclui o uso de estratégias para ampliar o mercado externo.
Enfim, para aqueles que procuram pensar a sociedade brasileira, observando os impactos sociais e econômicos de longo prazo, Furtado não só é leitura obrigatória, um clássico, mas uma referência necessária para a compreensão das ligações sociais e econômicas que orientam o campo das alternativas e da construção do desenvolvimento sustentável do país.
Constantino Cronemberger Mendes é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
1. Perroux (1939, Economic Spaces: Theory and Application, QJE. Mass., p.194) define a estrutura econômica como feita de proporções e relações que caracterizam um conjunto econômico no espaço (geografia) e tempo (história).
2. Em entrevista no lançamento dos indicadores do Séc. XX, IBGE, RJ (2003).
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