2005. Ano 2 . Edição 10 - 1/5/2005
"As Nações Unidas precisam se adaptar às novas prioridades e ao mundo de hoje. Devem mostrar que, como instituição de referência, seus valores éticos e sua ação estão acima de qualquer suspeita. Por isso é importante reforçar e não fustigar esse patrimônio comum”.
Carlos Lopes
O secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, descreveu o ano passado como "annus horribilis". Referia-se aos dilemas levantados pela Guerra no Iraque e às suas conseqüências relativas à quebra de consenso no Conselho de Segurança. Em 2005, as alegações sobre o Programa Petróleo por Alimentos dominam as discussões da Organização.
Esses momentos difíceis coincidiram com um período de reflexão único na história das Nações Unidas. O secretário-geral instituiu um Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança, pois acreditava que a Organização chegara a uma encruzilhada: poderia vir a responder aos novos desafios ou erodir na discórdia entre os Estados e o unilateralismo. Kofi Annan comissionou ainda o Projeto do Milênio, cujo mandato é propor estratégias para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Foram criadas forças-tarefa compostas de mais de 265 especialistas. O projeto apresentou suas conclusões no documento "Investindo no desenvolvimento: um plano prático para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio", entregue ao secretário-geral no início do ano.
Além da reflexão e do debate impulsionados por ambos os relatórios, a expectativa de revisão de cinco anos da Declaração do Milênio e o relatório lançado pelo secretário-geral prepararam o ambiente para a reforma. Sessenta anos após a criação da ONU, este é o ano das oportunidades. Mas 2005 não começou bem. O tema Petróleo por Alimentos afetou a imagem da Organização e o debate público não faz justiça às suas contribuições nas áreas humanitária e de desenvolvimento.
A quatro meses da Cúpula de Setembro para avaliar o progresso na implementação dos ODM, ainda há tempo para dar a volta por cima e recapturar o espírito da Declaração do Milênio. Foi com esse intuito que o secretário-geral produziu o relatório "In Larger Freedom", que propõe decisões realistas a serem tomadas pelos líderes mundiais. O documento é o resultado de um conjunto de compromissos políticos cuidadosamente elaborados e factíveis; e sugere reformas institucionais com os ingredientes necessários a um pacto global. Para Kofi Annan, precisamos de um acordo para enfrentar os problemas de desenvolvimento, de segurança e de direitos humanos: "Dependendo da riqueza, da geografia e do poder, nós percebemos diferentes ameaças como as mais urgentes. Mas a verdade é que nós não temos como escolher. Hoje, a segurança coletiva depende da aceitação de que as ameaças que cada região do mundo percebe como mais urgentes são, de fato, ameaças para todos". O programa de reforma proposto pelo secretário-geral enfatiza, portanto, a interdependência entre a crise da segurança e a da solidariedade: "Não teremos segurança sem desenvolvimento, não teremos desenvolvimento sem segurança, e não teremos ambos sem o respeito aos direitos humanos", diz seu relatório.
Por que 2005 permanece o ano das oportunidades? Porque pela primeira vez a humanidade tem o poder de acabar com a pobreza e garantir vida digna a todos. Há consenso sobre como fazer isso. O primeiro passo é atingir os ODM até 2015. Outra oportunidade é acordar e agir sobre uma nova visão de segurança que considere a ameaça a um como uma ameaça a todos. Esse novo consenso permitiria reduzir a distância entre visões dissonantes e responder de forma coletiva aos desafios urgentes. Além disso, poderíamos fortalecer o estado de direito, os direitos humanos e a democracia de forma concreta. Ao aproveitar o arcabouço normativo existente, sairíamos da "era da legislação para a era da implementação". E as Nações Unidas precisam se adaptar às novas prioridades e ao mundo de hoje. Devem, de forma transparente, mostrar que, como instituição de referência, seus valores éticos e sua ação estão acima de qualquer suspeita. Por isso é importante reforçar e não fustigar esse patrimônio comum.
Há muito em jogo para desperdiçar essas oportunidades.
Carlos Lopes é o representante do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da ONU no Brasil
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