2006. Ano 3 . Edição 23 - 6/6/2006
Renato Vilella
Nos países de democracia madura, a atividade mais importante do Parlamento é a discussão, emenda e aprovação do Orçamento. No Brasil, não.
Há mais de uma década - exceto neste ano, no caso da União - o processo vem ocorrendo de forma rápida e discreta, praticamente sem chegar às páginas dos jornais. Recorde-se que isso vem se dando em ambiente parlamentar que contou sempre com uma oposição aguerrida e vocal.
Esse aparente paradoxo é explicado basicamente por dois fatores. O primeiro deles é o engessamento orçamentário. Desde a promulgação da Constituição de 1988, verifica-se uma tendência a vincular a receita tributária a outros níveis de governo e a alguns setores. Da mesma forma, busca- se proteger áreas tidas como meritórias, com a definição de regras de crescimento das dotações anuais a elas destinadas ou vinculando-as a parâmetros como o salário mínimo, politicamente muito sensível. Outra causa de enrijecimento é o peso elevado que despesas de natureza obrigatória, como os salários do funcionalismo, os benefícios previdenciários e o serviço da dívida pública, têm no total do gasto. Disso resultou a redução acelerada da flexibilidade do Executivo e do Legislativo em alocar recursos públicos: hoje apenas 15% do Orçamento pode ser livremente direcionado e, desse valor, quase metade é dirigida a programas de combate à fome (os quais, em pouco tempo, também se tornarão virtualmente obrigatórios). Se esse quadro de engessamento não for revertido, não será exagero dizer que, no longo prazo, o Orçamento público de cada ano no Brasil terá sido elaborado por burocratas mortos.
"Se esse quadro de engessamento não for revertido, não será exagero dizer que, no longo prazo, o orçamento público de cada ano no Brasil terá sido elaborado por burocratas mortos"
O segundo fator refere-se às chamadas emendas parlamentares. Quando o executivo envia o projeto de lei orçamentário ao Legislativo, há um valor "reservado"para as emendas. É um montante - que nos últimos anos tem ficado em torno de 10 bilhões de reais - geralmente dirigido a pequenas obras e intervenções localizadas. Há o entendimento tácito de que, desde que não toquem no restante do Orçamento ou o façam apenas marginalmente, os parlamentares podem alterar as emendas a seu bel-prazer.
Não admira, portanto, que tradicionalmente haja pouco "barulho"na tramitação legislativa do Orçamento. A margem de manobra da autoridade executiva e do legislador é muito pequena e, como já há um valor reservado para que os parlamentares atendam a seus municípios e estados de origem, acaba não havendo espaço nem motivação para o debate democrático das prioridades.
Outro fato que compromete o processo orçamentário brasileiro se relaciona à receita a ser arrecadada. Tradicionalmente, o Legislativo aumenta o valor estimado pelo Executivo, de forma a criar, artificialmente, espaço para aumento de despesa, principalmente com as emendas parlamentares. Por seu turno, no início de cada ano o Executivo "contingencia"parte do Orçamento, para que seu valor total retorne a um nível próximo ao do projeto original, e só relaxa essa restrição se e quando a receita exceder sua previsão.
Esse contingenciamento é um procedimento plenamente justificável do ponto de vista da gestão macroeconômica prudente e responsável, pois é a forma de garantir o cumprimento das metas fiscais. Na prática, o Executivo subestima a receita, o Legislativo a eleva, e o Executivo segura a execução do Orçamento, para adequá-lo às necessidades da política de estabilização. Seria melhor, no entanto, que, em nome dos mesmos princípios, o Executivo e o Parlamento atuassem de maneira mais madura e racional, e evitassem o minueto. O resultado dessa dança é a perda de utilidade do Orçamento como guia confiável da ação governamental. A falta de aderência entre o que foi aprovado pelo Congresso e o que termina por ser efetivamente realizado reduz a transparência da ação pública e a efetividade de escolhas feitas democraticamente.
A triste conclusão é que o processo orçamentário é uma dimensão em que a democracia brasileira ainda precisa amadurecer muito.
Renato Villela é diretor adjunto da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
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