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Economia - Em busca do ajuste

2005. Ano 2 . Edição 14 - 1/9/2005

Especialistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada propõem um roteiro para o Brasil atingir o equilíbrio fiscal e induzir a queda da taxa de juro, o que poderá promover o crescimento econômico sustentado, baseado na manutenção do superávit atual por, pelo menos, dois anos

 
Ottoni Fernandes Jr

José era muito desorganizado com suas finanças pessoais. Não fazia as contas e gastava mais do que ganhava. Como tantos outros brasileiros, enforcou-se com os bancos, pagando juros altos para rolar o saldo devedor. Na metade dos anos 90, pressionado pelos credores, vendeu alguns bens para pagar parte da dívida. Mas só a partir de 1999 conseguiu cortar despesas e aumentar sua receita. Foi quando começou a pagar parte dos juros da dívida, que já representava quase 60% de tudo o que ganhava anualmente. José sabe que poderá negociar com as instituições financeiras e pagar juros menores, desde que consiga diminuir o saldo devedor. José tem a cara do Brasil. Foi o que aconteceu recentemente com o governo brasileiro. Desde 1999 passou a arrecadar mais do que gasta - sem contar o pagamento dos juros da dívida interna - e vem conquistando superávits primários substanciais: 5,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nos 12 meses até julho, quando a meta orçamentária para 2005 é de 4,25% do PIB. Mas a dívida pública brasileira ainda representava 51,3% do PIB no final de julho e no ano passado o governo gastou a bagatela de 80,6 bilhões de reais para pagar apenas 63% dos juros e o restante foi rolado.

Apesar desse endividamento e da crise política provocada por denúncias de corrupção que abala a solidez política do governo federal, a economia vai muito bem, empurrada pelos crescentes saldos na balança comercial brasileira e navegando numa conjuntura internacional de crescimento econômico quase inédito nos últimos anos. É o momento, afirma Fábio Giambiagi, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de sinalizar ao mercado que é possível aplicar uma política fiscal ainda mais consistente, que poderá induzir um processo de queda da taxa de juro real. Giambiagi escreveu um texto, em conjunto com Paulo Levy e Marcelo Piancastelli, ambos também do Ipea, em que sugere que o governo anuncie que buscará atingir o superávit primário de 5% do PIB nos próximos dois anos. Eles julgam ser possível alcançar esses resultados "sem a necessidade de apertos adicionais", pois basta conservar o resultado fiscal dos últimos meses.

No texto "A trajetória para atingir o déficit nominal zero", publicado em agosto, eles defendem que tal decisão provocará redução da relação da dívida pública com o PIB, abrindo espaço para a queda dos juros de longo prazo. De quebra, "nas atuais circunstâncias, operaria como uma poderosa âncora contra a ameaça de contaminação da economia pela crise política". Se o mercado confiar na determinação do governo em melhorar o resultado da política fiscal, argumentam os autores, abre-se a possibilidade de queda na taxa de juro, o que serviria para estimular o crescimento econômico, sem o risco de repiques da inflação.

Outra vantagem do aperto fiscal seria pavimentar o caminho para o governo atingir em 2008 o déficit nominal zero, quando seria possível pagar todas as despesas públicas com a arrecadação tributária, inclusive os juros da dívida pública. O trabalho do Ipea desenha um cenário de economia em alta e inflação descendente no qual seria possível chegar a 2008 pagando 4,8% do PIB em juros da dívida interna, quase a metade dos 9,3% do PIB que foram consumidos em 2003. Assim, a dívida pública cairia para 45% do PIB, comparada com 57,2% do PIB no final de 2003. É claro que não basta vontade para realizar esse objetivo, especialmente às vésperas de um ano eleitoral, quando os governos têm forte propensão para abrir as torneiras. Além disso, será preciso envolver os estados e municípios no esforço fiscal, pois em 2004, quando foi atingido o superávit primário de 4,6% do PIB, a parte do governo federal nesse resultado foi de 3% do PIB.

Caminho Mas a continuidade no esforço fiscal pode render frutos no futuro, pavimentando o caminho para que a economia cresça em bases sustentáveis e induza o setor privado, nacional e estrangeiro, a investir no aumento da produção e na infra-estrutura. O trabalho do Ipea reconhece que perseguir esse objetivo é um processo penoso, que exigirá também muita persistência do governo, mas lembra que outros países que adotaram essa estratégia de aperto fiscal colheram ótimos resultados.

Foi o caso da República da Irlanda, que era um dos países mais pobres da Europa Ocidental e hoje esbanja saúde econômica e tem atraído grandes volumes de investimento direto estrangeiro. Em 1987, a Irlanda apresentava indicadores econômicos típicos de um país com fortes desequilíbrios: a dívida pública representava 112% do PIB e atualmente está em posição melhor do que o Brasil, com 40% do PIB. Foi preciso um forte esforço fiscal, com contenção dos gastos. Em 2004, o país registrou superávit fiscal total de 1,3% do PIB, enquanto no período 1991-1995 exibia déficit anual médio de 2,3%. Há quem argumente que isso só foi possível porque é um pequeno país, com população de apenas 4 milhões de habitantes e que a perspectiva de ingressar na União Européia funcionou como poderoso incentivo. Mas o fato é que eles conseguiram um ajuste fiscal e o PIB per capita anual cresceu, em média, 6% entre 1999 e 2003. Houve continuidade no esforço e foi uma tarefa de mais de uma década.

Foi justamente para tentar garantir um processo contínuo de melhoria das contas públicas brasileiras que o deputado federal Antonio Delfim Netto (PP-SP) colocou novamente em discussão, no final de junho, uma proposta radical, quando a crise de governabilidade se acentuava: fazer uma emenda na Constituição e inscrever nas disposições transitórias a meta de atingir déficit nominal zero em quatro ou cinco anos, de forma a blindar a economia contra as incertezas políticas no atual governo e no próximo. Dessa forma, tanto o atual quanto o futuro governo federal seriam obrigados a praticar uma rigorosa política fiscal. Exigiria congelar os gastos públicos (leia artigo Gastar melhor é essencial para o sucesso da política fiscal)em termos reais e fazer mudanças na estrutura do Orçamento. A Constituição da República obriga o governo federal a aplicar em educação 18% da receita líquida e que os gastos em saúde cresçam anualmente com a variação do PIB per capita. Para contornar essas obrigatoriedades, seria preciso autorizar o governo federal a aumentar as verbas orçamentárias que pode destinar para fins diferentes do previsto - o que se chama Desvinculação das Receitas da União (DRU) - de 20% para 40% do Orçamento. Deputados do próprio Partido dos Trabalhadores (PT) criticaram a intenção de aumentar a DRU, pois implicaria reduzir as despesas em áreas como saúde e educação, hoje protegidas por dispositivos constitucionais.

Na avaliação de Márcio Pochmann, economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a proposta de Delfim Netto imporia um corte ainda maior nos gastos sociais da União. Ele lembra que entre 1995 e 2004 os impostos destinados a cobrir gastos sociais federais cresceram 40%, mas a despesa nessa área só aumentou 24%. O restante tem sido utilizado para obter superávits fiscais. Do lado das entidades empresariais houve um apoio quase unânime à proposta do deputado. Armando Monteiro Neto, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), aplaudiu o projeto, desde que fosse aplicado por tempo limitado, até que a dívida pública chegasse a 30% do PIB. Ele comparou a proposta de buscar o déficit nominal zero ao Tratado de Maastricht, assinado pelos países da União Européia em 1992, que impunha o teto de 3% para o déficit público (leia a entrevista de Joseph Stiglitz).

 

Custo O assunto foi debatido com empresários, ministros e com o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas não decolou por falta de adesão política. Além disso, a idéia foi duramente criticada por economistas que a viam como contraditória com a política monetária voltada para controlar a inflação: se o Banco Central resolvesse aumentar a taxa de juro para segurar uma alta do custo de vida, provocaria aumento das despesas com o pagamento do serviço da dívida e restaria ao governo federal cortar ainda mais seus gastos para garantir o equilíbrio fiscal. Além disso, a proposta de Delfim Netto criaria um engessamento da política fiscal, impedindo que os gastos públicos crescessem em momentos de recessão econômica, para aquecer a economia.

Principal agrupamento oposicionista, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) liderou a gritaria contra a proposta, alegando que ela engessaria a política fiscal e tiraria a liberdade de o governo expandir seus gastos para contrabalançar uma recessão econômica. Não faltou quem lembrasse que os países da União Européia, atados nas amarras de Maastricht, crescem em marcha lenta, enquanto os Estados Unidos colocou a locomotiva da economia em alta velocidade ao reduzir a taxa de juro e aumentar os gastos públicos.

Ciclo Havia também o temor de que a tentação do populismo atiçasse a solução de reduzir de maneira artificial a taxa de juro para garantir o déficit nominal zero, jogando por terra todo o esforço fiscal que vem sendo praticado desde o governo de Fernando Henrique Cardoso e abrindo espaço para novo ciclo de alta da inflação. O governo Lula não acatou a proposta, até porque não teria força para fazer que passasse no Congresso, pois emendas constitucionais têm de ser aprovadas por 60% dos parlamentares.

Agora, o Ipea volta a colocar na mesa de discussão uma alternativa para chegar ao efetivo equilíbrio fiscal, mas sem qualquer mudança constitucional e com espaço para que o governo faça correções de rumo. Em primeiro lugar, precisa haver uma decisão política, argumenta Giambiagi (leia artigo Em defesa de um superávit primário de 5% do PIB), com o governo assumindo o compromisso de buscar um superávit primário no mesmo nível que vem sendo alcançado neste ano, pois as receitas do governo federal têm superado a previsão. "Não se trata de cortar despesas, mas manter seu nível real pelos próximos anos. Nossa estimativa é que a receita do governo alcance 24,4% do PIB em 2005, quando o previsto no Orçamento da União é 23,7%." De fato, de janeiro a julho, a receita total do Tesouro da União atingiu 20,4% do PIB, superando o resultado do mesmo período de 2004 em 0,72% do PIB. Atualmente, o superávit primário é um pouco superior a 5% do PIB, quando a meta orçamentária para 2005 é chegar a 4,25% do PIB. Giambiagi pergunta: "Que fazer com o excedente de 0,7% do PIB?"

Uma hipótese seria reduzir a carga tributária, mas isso já foi feito, especialmente em setores como o de bens de capital, determinantes do crescimento futuro da economia. Segundo o trabalho do Ipea, "a redução da carga fiscal deveria ocorrer no contexto da discussão da reforma tributária, que requer um melhor desenho para o sistema tributário e revisão da estrutura de repartição das receitas fiscais no âmbito federativo, recolocando-as a serviço do crescimento econômico".

Outra hipótese para usar o excedente seria aumentar os investimentos, mas Giambiagi pondera que o governo federal não tem conseguido sequer cumprir as metas nos setores de infra-estrutura, cujo valor não entra na conta das despesas, na hora de calcular o superávit primário, conforme foi acertado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Até julho, foram realizados investimentos previstos no Plano Piloto de Investimento, que não afetam o superávit primário, de 1,4 bilhão de reais, e a dotação para 2005 é de 3,2 bilhões de reais. Além disso, a falta de regulamentação limita investimentos em setores como o de saneamento.

Cargos Para manter o superávit fiscal em 5% do PIB e liberar recursos para investimentos sociais e em infra-estrutura, diz Piancastelli do Ipea, é preciso melhorar a eficiência, a qualidade e o controle dos gastos públicos. Esse ponto tem sido cobrado por diversas entidades empresariais, que criticam a má gestão de recursos e o excesso de cargos de confiança no governo federal, com nomeações por critérios políticos e não técnicos. Levy, do Ipea, lembra também que é preciso concentrar forças e capacidade de articulação para fazer passar no Congresso a unificação das máquinas de arrecadação da Receita Federal e da Previdência Social. Isso ajudaria a conter a evasão de tributos e permitiria reduzir as alíquotas de imposto, diminuindo a carga tributária, que é a mais alta da história recente.

 

Seria uma forma de reduzir o déficit do sistema previdenciário federal, que já representa 2,9% do PIB. O trabalho do Ipea recomenda que o processo de unificação dos sistemas de arrecadação seja "complementado por mudança nas regras de acesso aos benefícios previdenciários".

Operar a sintonia fina dos gastos públicos é uma tarefa gigantesca, pois um erro na alocação de prioridades pode ter resultados onerosos para toda a economia e sociedade, lembra o economista Luciano Coutinho, da LCA Consultores. "Acho possível e desejável sustentar um superávit primário de 5% do PIB nos próximos anos para chegar ao déficit nominal zero, pois vai transmitir uma mensagem de solidez fiscal para o mercado." Para 2005, ele acha difícil que o governo, mesmo que haja uma decisão política, consiga chegar ao superávit de 4,25% do PIB, pois não será fácil realizar as despesas necessárias até o fim do ano.

Risco O grande desafio, alerta Coutinho, será selecionar prioridades, pois um erro poderá afetar um setor vital da economia, que é o de geração de energia elétrica, cujas perspectivas não são das melhores. A principal dificuldade que afeta o setor elétrico brasileiro atualmente, diz, é que não há garantia de oferta e preço do gás importado da Bolívia, o que pode paralisar os investimentos em usinas termelétricas, vitais no caso de seca prolongada. O risco, adverte Coutinho, é deixar faltar eletricidade, um insumo vital para assegurar o crescimento econômico e que também pode ter graves conseqüências na imagem do governo junto à população. Segundo o economista, o apagão de 2001 derrubou a popularidade do governo FHC e pode ter contribuído para a derrota de José Serra nas eleições presidenciais de 2002. O trabalho do Ipea reconhece que os investimentos públicos foram reduzidos para ajudar no ajuste fiscal do lado do gasto, o que já parece "afetar o próprio crescimento econômico pelo impacto de sua redução sobre a disponibilidade de infra-estrutura". De fato, em 2004 os investimentos do governo federal representaram apenas 0,62% do PIB, enquanto em 1993 foram de 1,39%. No entanto, a lógica da proposta do Ipea supõe que, em contrapartida, será possível provocar o aumento do investimento do setor privado, desde que os empresários acreditem que a estratégia de ajuste fiscal seja capaz de derrubar os juros reais. A ampliação do investimento privado poderia aquecer a economia até que o Estado retomasse o ciclo de investimento.

Se o mercado financeiro passar a apostar numa queda das taxas de juro administradas pelo Banco Central, também será possível ampliar a colocação de títulos públicos federais com taxas prefixadas, que em julho representavam apenas 22,4% do total. Como esses títulos vencem em prazos determinados, com valor acordado em seu lançamento, ficaria mais fácil a administração da dívida pública federal. Paulo Nogueira Batista Jr., economista e professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, pondera que uma manifestação de boas intenções por parte do Ministério da Fazenda, de que vai executar uma rígida política fiscal, pode não ser suficiente para que o mercado aceite comprar títulos federais por uma taxa menor, devido à falta de credibilidade política do governo. Além disso, ele diz que o superávit primário de 4,25% do PIB já é um excelente resultado e aumentar o aperto fiscal reduziria a margem de manobra da política econômica.

Queda Recentemente, o Banco Central aumentou a taxa de juros para conter a inflação, mas o economista Luiz Gonzaga Belluzzo adverte que não está garantida uma trajetória de queda dos juros, por melhor que seja o processo de ajuste fiscal, pois o Brasil é vulnerável às mudanças na economia dos países desenvolvidos. "Vivemos hoje uma situação de extraordinária liquidez no mercado internacional, mas esse mercado é muito volátil e o Tesouro dos Estados Unidos pode resolver subir a taxa de seus títulos a qualquer momento." Assim, se o governo quiser continuar atraindo capitais externos, terá de subir a taxa de juro interna, com reflexos na redução do superávit fiscal, diz.

Independentemente dos possíveis efeitos externos, não será tarefa fácil implementar uma política de aperto fiscal na atual conjuntura política. No final de agosto, o Congresso aprovou a Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO), que estabelece a moldura para a montagem do Orçamento da União de 2006. A meta de superávit primário para o próximo ano foi fixada em 4,25% do PIB. Além disso, ganha força dentro do próprio PT a ala contrária à linha econômica do ministro Antonio Palocci. No Congresso, a bancada ruralista, que representa os produtores agrícolas, já se alinhou contra o aumento no rigor fiscal num momento em que o setor reivindica renegociação de suas dívidas com os bancos por causa da quebra da safra agrícola. Também não existe consenso entre os próprios ministros quanto à necessidade de apertar o torniquete fiscal.

Crise A dificuldade de usar o aperto fiscal em momentos de crise política ficou bem evidente na história recente da Argentina, como lembra o economista Batista Jr. O presidente argentino Fernando De la Rúa tomou posse no final de 1999, prometendo equilibrar as contas públicas. Em agosto de 2000, estoura uma crise política, com denúncias de que o governo havia subornado senadores para aprovar a reforma trabalhista. A instabilidade política durou meses e, no final de março de 2001, De la Rúa nomeou Domingos Cavallo como superministro da Economia e conseguiu aprovar no Senado, em 30 de julho, uma lei voltada para garantir déficit fiscal zero, com apoio do FMI e do setor financeiro. O movimento social reagiu e os piquetes de desempregados paralisaram ruas e estradas. De la Rúa pediu demissão em 30 de dezembro. O Brasil de hoje não é a Argentina de ontem, mas vale lembrar a experiência.

 
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